Muitos dos trabalhos de Yuri Firmeza se articulam em torno dos processos de construção da identidade e das modalidades de escrita da história, seja coletiva, seja pessoal. É o caso de Nada é, vídeo realizado em Alcântara, cidade que no século 18 foi um polo econômico próspero e capital do estado do Maranhão. O espectro desse passado ainda persiste nas ruínas de casarões coloniais, alguns deles inacabados. Nesta época, quando era habitada por barões de cana-de-açúcar e de algodão, a cidade mantinha a expectativa de receber Dom Pedro II (1825-1891). Em uma emulação e competição entre os habitantes, mansões foram edificadas e festas organizadas para estar à altura dessa possível visita, mas que nunca de fato se concretizou. O imaginário imperial também está presente na Festa do Divino Espírito Santo, manifestação de cultura popular de tradição católica, que se destaca pela encenação da corte e suas relações hierárquicas. A festa continuou a ser realizada todos os anos nos quinze dias que seguem a Páscoa, mesmo com o fim da economia colonial, no século 19, quando a cidade deixou de ser um polo econômico. Alcântara só ganha novamente em visibilidade quando foi ali implantado um centro de lançamento de foguetes, em 1983. Seguindo uma estrutura não linear, o vídeo associa imagens e impressões sonoras dessas diferentes camadas espaço-temporais que convergem nesta cidade na qual passado e futuro, ficção e realidade parecem se confundir: é um eterno estado de espera, uma promessa de consagração e modernização por vir.
— Equipe curatorial MASP, 2017
Por Patricia Mourão
Do fundo de uma tela muito negra, chega-nos o som de uma valsa de carnaval. Aos poucos, tal qual uma estrela a atravessar o firmamento sem pressa, surge um ponto luminoso, dourado: um músico solitário, negro como a noite e como a tela, toca saxofone. Assim começa Nada é, filme de 2014, de Yuri Firmeza, rodado em Alcântara, antiga capital do Maranhão, onde ruínas de palacetes coloniais construídos no século XIX para receber Dom Pedro II – em uma visita, no entanto, cancelada – sobrevivem como sinais de sonhos e expectativas de futuro não realizadas. Alcântara também abriga a base espacial da força aérea brasileira para lançamento de foguetes. Firmeza inscreve seu filme na dobra entre essas diferentes promessas, passadas ou presentes, de futuros. Entre imagens de ruínas e do espaço sideral, intercalam-se registros da Festa do Divino – onde, a cada ano, reencena-se a coroação do imperador menino – e de adolescentes negros, vestidos em trajes faustosos de cetim brilhante, posando fixamente e longamente para a câmera. Teatralizadas, essas imagens remetem à tradição pictórica dos retratos da corte, da qual os negros estiveram excluídos, mas também, e principalmente, à tradição popular da foto-pintura, muito comum no norte e nordeste brasileiro, em que retratos de família eram montados, compostos e coloridos artificialmente, com cores saturadas. Nada é natural em Nada é – mesmo as imagens documentais são editadas com sons distantes, retirados do arquivo da NASA. De modo que um ar de extraordinário, um tom sobrenatural low tech, paira sobre Alcântara e sobre filme, ou faz com que o filme (e a Alcântara deste filme), paire sobre o mundo – como um foguete, uma cápsula do tempo, esperando um decifrador futuro ou um lugar para aterrissar.
— Patricia Mourão, doutora em cinema, USP, 2021