No ano dedicado às Histórias afro‑atlânticas no MASP — as histórias dos fluxos e dos refluxos entre a África e as Américas através do Atlântico —, a exposição de Maria Auxiliadora (1935 ‑1974) assume uma urgência. A pintura delicada, precisa e pungente da artista retrata seu cotidiano e sua cultura, atravessando muitos temas afro‑brasileiros: a capoeira, o samba, a umbanda, o candomblé, os orixás. Maria Auxiliadora representa também o dia a dia de seus familiares e de seus amigos nos subúrbios de São Paulo, especialmente nos bairros da Brasilândia e da Casa Verde. Aqui, podemos pensar no argumento feminista de Carol Hanisch nos anos 1960: “o pessoal é político”. Num contexto e numa cultura em que, na história da arte, as coleções de museus são dominadas por representações e gostos eurocêntricos, brancos e elitistas, a obra de Maria Auxiliadora ganha o sentido de resistência.
De origem humilde, descendente de escravizados, Maria Auxiliadora inventa um outro modo de pintura, longe dos preceitos acadêmicos e modernistas. Uma técnica singular se tornou sua assinatura: mediante uma mistura de tinta a óleo, massa plástica e mechas do seu cabelo, a artista construía relevos na tela. Seu percurso está longe dos artistas canonizados pela história da arte: passou pelas feiras de artes da praça da República, no centro de São Paulo, e da cidade de Embu das Artes, próxima da capital — lugares de confluência e intercâmbio entre aqueles que não encontravam espaços e oportunidades em museus e em galerias do circuito oficial.
Nesta exposição, as pinturas estão organizadas em sete núcleos, pautados nos grandes temas de Maria Auxiliadora. O núcleo Candomblé, umbanda e orixás é central em sua obra, se nos lembrarmos de que, no Brasil, parte da resistência negra se estruturou por meio dos cultos religiosos de matriz africana. Manifestações populares apresenta as procissões e as festas juninas, a capoeira, o bumba meu boi, o carnaval de rua, o samba, os botecos, os bailes de gafieira. Em Autorretratos, a própria Maria Auxiliadora se coloca nos papéis de artista, em plena atividade, mas também de noiva ou de enferma (aos 39 anos, faleceu em decorrência de um câncer). Em Casais, uma de suas maiores obsessões, o enfoque é o cortejo e a conquista, refletindo, assim, sua perspectiva romântica. Em Rural, reúnem‑se imagens do trabalho e da vida no campo. Urbano traz cenas em parques de diversões, praça, bar, cinema e escola. No núcleo Interiores, o cotidiano é registrado e celebrado em situações marcadas pelo afeto e pela intimidade, especialmente em reuniões realizadas entre mulheres.
Após um longo período de esquecimento (a última grande exposição individual de Maria Auxiliadora aconteceu em 1981, no MASP), esta mostra tem o objetivo de renovar o interesse por esta artista brasileira fundamental, para além das preconceituosas, paternalistas e redutoras categorias de “arte naïf” ou “primitiva”. Seu trabalho propõe uma resposta à questão crucial para qualquer museu que deseje efetivamente dialogar e ser relevante para o contexto em que se encontra inserido: de que modo a arte pode representar outras culturas, que não a das classes dominantes?
Maria Auxiliadora nos oferece assim uma vida (e uma arte) para nosso tempo — no MASP, em São Paulo, no Brasil e no mundo.
CURADORIA Adriano Pedrosa, diretor artístico, MASP; Fernando Oliva, curador, MASP.