Lise Tréhot (1848-1922) posou para muitas telas de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), incluindo algumas das mais importantes do início de sua obra, e parecem ter tido um relacionamento afetivo na época. Entre 1865 e 1872, Renoir expunha principalmente em salões, que selecionavam obras a partir de um direcionamento restrito a temas canônicos. Em busca de legitimação, o pintor atendia a esse repertório de imagens, e assim vemos Lise representar diversos papéis. A banhista e o cão griffon–Lise à beira do Sena, do MASP, foi exposta no salão de 1870, junto a Odalisca, feita no mesmo ano porém menor, e que tinha a mesma Lise como modelo. Desde o Renascimento, mas ainda na arte acadêmica, a tradição da pintura limitava a representação de corpos nus a temas mitológicos, com deusas e ninfas se banhando ou à beira do rio. Artistas recorriam a esses motivos como estratégia para estudar o corpo. Na segunda metade do século 19, as banhistas passaram a ser personagens frequentes, uma visão naturalista já desvinculada dos ideais de beleza de Vênus e Diana. O banho autorizava a nudez como um hábito cotidiano. A obra de Renoir contém uma sucessão de referências na história da arte: ela cita uma célebre pintura do francês Gustave Courbet, As banhistas (1853), que por sua vez teria sido inspirada numa fotografia de Julien Vallou de Villeneuve (Estudo a partir da natureza, nu número 1935, 1853), além de remeter à Vênus de Cnido. Hoje, não podemos deixar de ler na tela uma representação de um olhar kuir, em uma mulher que observa languidamente a outra; nesse contexto o pequeno cão griffon pode ser um símbolo do desejo indisciplinado.
— Equipe curatorial MASP, 2020
Por Lilia Schwarcz
No ano de 2017, tomei parte — com Adriano Pedrosa, Camila Bechenaly, e Pablo Leonardo de la Barra — da curadoria da exposição Histórias da sexualidade do MASP . A mostra foi aberta num contexto particularmente explosivo, logo após o fechamento da exposição Queer Museum, no Santander Cultural em Porto Alegre, e do conflito que envolveu a performance do bailarino e coreógrafo Wagner Schwarz do MAM. Já a mostra do MASP misturava tempos, suportes e geografias, e trazia, logo na primeira sala, um painel contundente. Se, com frequência, são as mulheres que aparecem nuas nas tela de pintores homens, nesse caso, apenas a pintura de Renoir, do acervo do MASP, retratava uma jovem sem roupas, no centro da parede. Miguel Ánjel Rojas mostrava numa fotografia em preto e branco um outro David, que retornava da guerra mutilado, mas cuja beleza escondia a fatalidade. Ao lado dele, Francis Bacon entrava com um estudo do corpo de um homem visto pelas costas. Por outro lado, o chileno Juan D’Avila trazia a representação de uma personagem branca aparentemente trans ou não binária, fazendo referência a William Buckley, um branco inglês, personagem da história australiana, que foi viver com os aborígenes, e retorna para viver com os brancos. Por fim, na mesma parede, a pintura de Miriam Cahn desconstrói convenções de gênero, mostrando um dorso nu masculino realizado, agora, por uma artista mulher. O resultado era quase um manifesto contra a misoginia feito a partir de vários representações de nus em corpo inteiro e da fricção entre eles.
— Lilia Schwarcz, curadora adjunta de histórias, MASP, 2020
Por Luciano Migliaccio
Kenneth Clark afirma que “todos aqueles que escreveram sobre Renoir lembram sua adoração pelo corpo da mulher e citam o próprio artista, dizendo que teria sido difícil para ele dedicar-se à pintura sem essa adoração. Mas são raros, nas pinturas que ele realizou antes dos 4o anos, os nus femininos”. O quadro do Masp – A Banhista e o Cão Grifon – Lise à Beira do Sena – seria o primeiro de que se tem notícia. Lise Tréhot, que Renoir conheceu em 1865, e que foi sua modelo preferida até 1872, também posou para esse trabalho (Camesasca 1989, p. 137), no qual Renoir evoca as Banhistas de Courbet (1853, Montpellier, Musée Fabre) e no qual é perceptível a influência do mestre na figura Dama Sorrindo (Retrato de Alphonsine Fournaise), uma citação das Moças à Beira do Sena (Petit-Palais, Paris 1857). A pintura foi exposta no Salon de 1870, onde recebeu críticas negativas de Goujon, Duranty e Mezin. O caricaturista d’Arnoux, também conhecido por Bertall, reelaborou-a ironicamente em registro pornográfico. Na exposição, Renoir foi apreciado mais pelo quadro intitulado As Mulheres de Argel (Washington, National Gallery), realizado em homenagem a Delacroix. Chaumelin julgou ver na Banhista uma caricatura da Vênus de Medici (Florença, Uffizi), enquanto Reinach nota as afinidades com a Vênus de Cnido (Roma, Musei Vaticani), que Renoir deve ter tido a oportunidade de conhecer por meio de cópias e que reproduziu numa pose invertida.
— Luciano Migliaccio, 1998