Há divergências sobre a autoria da obra do MASP, Adoração dos pastores (1630-35). Quando entrou para a coleção do museu, na década de 1950, foi atribuída ao pintor espanhol José de Ribera (1591-1652). Porém, após troca de correspondência entre Pietro Maria Bardi, então diretor do museu, e especialistas em arte italiana e espanhola, a autoria foi atribuída a Bartolomeo Passante, um colaborador napolitano de Ribera. Divergindo dessa hipótese, alguns historiadores acreditavam que parte do conjunto de obras atribuído originalmente a Passante fora criada por um pintor anônimo de Nápoles, o Mestre da Anunciação aos Pastores, e o apontaram como autor da pintura do MASP. Em 1969, Roberto Longhi (1890-1970), historiador de arte italiana, escreveu um artigo no qual afirmava que o conjunto todo pertence a Passante, mas a questão ainda permanece em aberto. A obra do MASP é considerada uma das pinturas de maior
qualidade do artista, em que fez uso do tenebrismo, técnica do período barroco, na qual se utilizava apenas uma fonte de luz para destacar as sombras e agregar drama e tensão às pinturas, dominadas por tons escuros. Apesar da seriedade e gravidade da composição, a leveza dos anjos em torno de Jesus confere um ambiente íntimo e familiar à obra, que aproxima a cena de tema sacro do âmbito da vida cotidiana.
— Equipe curatorial MASP, 2018
Por Juliana Guide
"Quando os anjos os deixaram (...) os pastores disseram: vamos já a Belém e vejamos o que aconteceu. Foram então às pressas, e encontraram Maria, José e o recém-nascido na manjedoura". Parece apropriado que hoje comecemos com esse trecho bíblico, que inspira a obra atribuída a Bartolomeo Passante, feita entre 1630 e 1635. Nela, nossos olhos são atraídos para as áreas de iluminação marcada, que contrastam com as trevas acastanhadas da maior parte da tela—evidência da importância de Caravaggio na pintura napolitana e no trabalho de José da Ribera, grande pintor a cujo entorno certamente pertencia o artista autor da obra. A luz revela o menino Jesus ao centro, e visões parciais de seu público: Maria, José, dois pastores e três graciosos anjos. O robusto pastor ajoelhado de perfil em primeiro plano tem sua condição de trabalhador braçal destacada pela musculatura e pelas vestes rústicas, com rasgos. Sua monumentalidade confirma: é a fé das pessoas simples que está sendo elogiada, a mesma fé que permite a esses cuidadores de animais testemunhar um momento tão sagrado. O tema da adoração dos pastores permite uma dupla leitura: celebra a importância da crença das pessoas pobres, ao mesmo tempo que remete, num salto temporal, ao próprio devir do Cristo bebê, ele mesmo futuro bom pastor de seu rebanho espiritual. A composição se organiza de maneira que a cena íntima se abre ao observador: ao nos posicionarmos diante da obra, acabamos por integrar a exclusiva audiência do evento sacro.
— Juliana Guide é mestre em Estudos da Tradição Clássica em História da Arte pela Unicamp e é professora no MASP Escola, 2021
Por Galia Daniela Cabrera
A obra Adoração dos Pastores foi doada ao Masp em 1950 pelo banqueiro ibero-paulista Domingos Fernandes Alonso, que a comprara no mercado londrino com uma atribuição a Jusepe Ribera. Em 1951, Martin Soria examina o quadro e propõe, em uma carta ao professor P. M. Bardi, a atribuição a Bartolomeo Passante (Cabrera 1991-1992, apêndice documentário: carta de 23/2/1951). Em seguida, a obra foi publicada por José Hernández Pereira como um original do “Mestre da Anunciação aos Pastores” (Perera 1958).
O exemplar do Masp é de excepcional qualidade pictórica e pode ser considerado entre as suas obras de maior resultado compositivo, malgrado o estado de conservação da obra não ser o ideal. Pelo tipo de composição e pela vibrante luminosidade presente na obra, podemos aproximá-la em termos estilísticos a Natividade da Fundação Longhi e a Adoração dos Pastores da Pinacoteca Comunale de Rimini (De Vitto, in V. A. 1984, p. 341, cat. 2.143), propondo uma datação comum ou aproximada para este conjunto de obras. Elas estariam situadas no período ime- diatamente anterior à Adoração dos Magos da Coleção do Banco de Nápoles e ao Nascimento da Virgem de Castellamare di Stabbia (V. A. 1982, pp. 83 e 195, cat. 85; V. A. 1984, p. 346, cat. 2.148; Spinosa 1988, p. 186; V. A. 1989, p. 81, cat. 30), ou seja, naqueles primeiros anos de discreta revisão do naturalismo riberesco em direção a uma sensibilidade mais abertamente veneziana, característica aliás comum à pintura napolitana da primeira metade dos anos 30.
A luz adquire uma grande importância nesta composição por meio de sutis jogos e mudanças cromáticas, sobretudo no grupo central dos anjos ao redor do Menino. Igualmente, o tratamento minucioso dos panejamentos e das asas revela inesperadas tonalidades de branco que contaminam o tom castanho predominante no quadro. O grupo central confere um tom íntimo à Adoração, difícil de encontrar em Nápoles na pintura tenebrista antes de 1630, mesmo que a presença dos anjos nada tenha de sobrenatural. Nota-se ainda que o delicado tipo fisionômico da Virgem ou do anjo ao centro é uma constante deste pintor, e pode-se ser encontrado facilmente nos quadros deste período.
Finalmente é importante assinalar que esta Adoração, assim como a Natividade de Longhi e a de Bourgen-Bresse (Spinosa 1988, p. 185), corresponde às dimensões do quadro que podia ser visto na fachada interna da igreja de San Giacomo degli Spagnoli, como referido pelas fontes e amplamente discutido por Spinosa. Um quadro igualmente correspondente ao do Masp encontrava-se na coleção napolitana de Francesco Montecorvino em 1698 (para uma possível referência nos inventários Seiscentistas, in Passante & Bassante in italian inventories, Getty Provenance Index 3/92, item n. 0021 a).
— Galia Daniela Cabrera, 1998