A partir de uma pesquisa sobre ações transgressoras ligadas ao universo da arte, Carla Zaccagnini faz menção a um ataque de sete golpes de cutelo que rasgaram a Vênus do espelho (1647) de Diego Velázquez (1599-1660), pintura muito celebrada pela história da arte ocidental canonizada. O ato foi realizado em 1914 por Mary Richardson, militante do movimento sufragista britânico responsável por uma série de movimentações radicais em favor do direito ao voto das mulheres. Dentre as diversas estratégias usadas para chamar a atenção para a causa, as sufragistas se utilizaram de gestos contra obras de arte famosas, principalmente pinturas feitas por artistas homens que representavam cenas de mulheres nuas, ou ainda de homens em situações de poder. Assim, as fissuras na tela provocadas pela lâmina se concentraram sobre a imagem do dorso nu da deusa romana da beleza, que repetidamente serviu como base iconográfica de uma representação idealizada e sexualizada do corpo feminino na história da pintura. Inspirada nesse episódio, Zaccagnini faz uma remontagem contemporânea da ação de Richardson por meio de um papel em branco com as mesmas proporções do trabalho de Velázquez, reproduzindo os cortes originais feitos na pintura, que hoje está restaurada. Ao retomar os cortes no tecido, a artista reflete sobre a permanência desse gesto atualmente, em consonância com o que a própria Richardson havia afirmado: que os cortes que ela fez representavam “hieróglifos para as gerações futuras”, ou seja, como símbolos históricos que até hoje reverberam as desigualdades de gênero na história da arte, uma ferida que ainda não se fechou.
— Danilo Cavalcante, estágiario, MASP, 2023