O Último Baluarte – A Ira das Mães é a primeira obra da Série Bíblica, composta de outras oito composições de grandes dimensões, encomendadas a Portinari por Assis Chateaubriand para a sede da Rádio Tupi de São Paulo. Ela reflete de modo particularmente evidente o impacto de Guernica (1937) sobre Portinari, que ele deve ter visto em Nova York, quando, após executar os quatro painéis da Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso de Washington, segue para Nova York, onde pinta o retrato da mãe de Nelson Rockfeller. É em vão, e não sem atléticos distinguo, que a crítica coeva procura absorver o portentoso ciclo de Portinari à imagem de pintor “brasileiro” por excelência com que se o viera consagrando. Mário de Andrade não hesita em ver no ciclo um processo psíquico contínuo de assimilação do outro, de transformação das soluções alheias em uma pintura própria e original, no arco que leva de O Último Baluarte às Trombetas de Jericó. Para Sérgio Milliet, a diferença entre Picasso e Portinari é a que intercorre entre a “inteligência pura” e a “inteligência do coração”... Ambas as distinções, de Mário de Andrade e de Sérgio Milliet, parecem incapazes de ocultar um mal-estar intelectual e ideológico diante do herói nacional convertido em súcubo, hipnotizado pelo chef-de-file da École de Paris. Mais interessante, embora a nosso ver não inteiramente satisfatória, é a hipótese recentemente sugerida por Fabris (1996, p. 103), que transfere este mal-estar para a própria consciência do artista. Para a estudiosa, com efeito, Portinari “penetrado pelo drama da guerra, em crise diante de sua imagem de ‘artista oficial’, (...) teria tentado solucionar, pela aproximação a Picasso, a inquietude que havia tomado conta de sua vida”. Fabris apóia-se provavelmente em uma passagem de Portinari, posta em destaque pela própria autora em seu livro sobre o artista, na qual ele declara: “Picasso fulmina-me... Eu tinha de fazer O Último Baluarte. Se não o tivesse feito, isso teria sido muito ruim. Era preciso fazê-lo e esperar pelo que acontecesse. Ou me afundaria ou conseguiria dar o salto”.
O “salto” que Portinari dá com o ciclo em questão não é o de “nacionalizar” Picasso. É na realidade a culminância de um processo de amadurecimento artístico, processo que lhe permite pela primeira vez compreender profundamente a genialidade de Picasso e, assim, situar-se de pleno na arte de nosso século. Como tantos outros grandes artistas brasileiros, desde Aleijadinho, Portinari foi tanto mais grandioso quanto melhor imitou, como, de resto, a arte é, salvo em casos esporádicos, tanto mais grandiosa quanto mais sincera e profundamente se consagra à imitação.
— Autoria desconhecida, 1998