A rua e a cidade são os temas do trabalho de Marcelo Cidade, que utiliza materiais como concreto, metal, tinta spray, vidro e tapume. Suas obras lidam com as relações frequentemente violentas entre o público e o
privado, os ricos e os pobres. Em
Tempo suspenso de um estado provisório, o cavalete projetado por Lina Bo Bardi (1914‑1992) para a sede do MASP na avenida Paulista, inaugurada em 1968, tem o cristal substituído por um vidro triplo blindado que, por sua vez, foi atingido por dois tiros
de revólver. O cavalete de Lina é uma forma radical de expor obras de arte, deixando‑as suspensas, retirando‑as da parede, humanizando‑as e aproximando‑as do público. Medindo 1,82 m, o cavalete de Cidade é mais baixo
que o original, porém, ganha a altura de um homem — pode representar, portanto, um sujeito atingido, talvez fatalmente, no peito e na perna. O trabalho de Cidade coloca o cavalete como objeto de reflexão
institucional: exposto na pinacoteca do MASP, é uma obra que tem como tema seu contexto; trata da história do espaço onde ele se encontra; é, ao mesmo tempo, homenagem ao projeto de Lina e registro da memória de seu
violento afastamento, ou suspensão, entre 1996 e 2015.
Por Guilherme Giufrida
Até 2015, poucas eram as obras de arte contemporânea na coleção do MASP. Em novembro de 2015, na volta dos cavaletes de vidro concebidos por Lina Bo Bardi para a pinacoteca do museu, os trabalhos foram dispostos em
ordem cronológica, e, ao final da sala, chegávamos em
Tempo suspenso de um estado provisório(2011/2015), de Marcelo Cidade, uma doação daquele ano e a única obra feita no século 21 em exposição. De imediato, o impacto era grande: o trabalho desviava-se da concentração em arte figurativa presente na mostra,
algo que o museu tem favorecido desde sua fundação em 1947 (e que se mantém até hoje). O trabalho de Cidade se apropria do próprio dispositivo expositivo de Lina — o cavalete de vidro — questionando sua transparência
e neutralidade. Ao invés dos dois furos no vidro sempre previstos no cavalete para se pendurar os quadros, Cidade marca com dois tiros de bala a lâmina de vidro blindado (e não temperado, como no cavaletes de Lina),
um material utilizado normalmente para proteção — blindagem — de bens, pessoas e propriedades, em carros ou residências. Naquele momento, a obra podia ser lida como uma crítica ao próprio MASP, que havia afastado por
quase 20 anos o cavalete de vidro da mostra do acervo, uma forma de expor tão única e experimental, concebida de modo indissociável ao edifício. Esta semana, ao ver as notícias sobre a defesa do governo Bolsonaro de
armamento da população, revejo esse trabalho também como uma representação ou emblema tão contundente, explícito e direto de uma das marcas da sociedade brasileira, a violência, e da função de contra-ataque da
própria arte, cravando no tempo gestos de resistência.