Por Luiza Interlenghi
Fundo Cósmico de Microondas (2009) do artista visual, poeta e músico Cabelo, é como um véu na fronteira entre visível e invisível, entre face e máscara. A figura enigmática de um dos gêmeos que, sob uma aura espiritual aos 10 anos de idade, lideraram a guerrilha birmanesa cristã (em 1997, na atual Mianmar) é duplicada pelo artista e impressa sobre voal. O tom escuro do tecido vai sendo habitado por traçados misteriosos, como pinturas rupestres, e fluidos, como a fumaça da cigarrilha tragada pelo menino de olhar desafiador. Essas linhas inquietas esboçam símbolos mágicos e escritas indecifráveis, e contornam a figura, ao centro, de onde desdobram-se outros olhos e faces, reflexos replicados infinitamente entre espelhos. Esse rosto formado por seu próprio duplo reaparece em toda a série Mianmar Miroir desde 2001. Retorna em esculturas rituais e máscaras extraídas do interior de Ovos Bomba, usadas em performances no projeto Luz com Trevas (2018–). Vindo da cultura das ruas no Rio de Janeiro, onde vive, skatista, rapper e inquieto investigador do invisível, Cabelo evoca o corpo e o espiritual, o Rap e a poesia de Gerardo Mello Mourão, o samba e o paradoxo de Zenon, além do delírio nas performances de Tunga. Véu ou máscara, a imagem é ativada pelo movimento do corpo catalisador, como nos Parangolés de Hélio Oiticica (1937-1980). O enigma do duplo, que os gêmeos personificam, persiste na poética de Cabelo, que considera menos urgente e importante indagar quem é o artista e mais o que ele é. Sob suas múltiplas faces, talvez encontremos um ilimitado fundo cósmico e rastros de insondáveis microondas.
— Luiza Interlenghi, professora no Departamento de Artes, PUC-RJ, 2020