Desde sua formação com Pietro Perugino (1446‑1524), Rafael Sanzio circulava na corte de Urbino e, aos 16 anos, já recebia encomendas de pinturas. Em 1504, o artista mudou‑se para Florença e, em seguida, para Roma, onde realizou a decoração dos apartamentos papais (1508‑1520) e entrou em contato com artistas como Leonardo da Vinci (1452‑1519) e Michelangelo (1475‑1564), influências importantes em seu amadurecimento. A pintura do MASP, Ressurreição de Cristo, foi alvo de grande discussão entre os historiadores da arte, até ser atribuída à juventude de Rafael. A obra apresenta características que Rafael assimilou no ateliê de Perugino, como a rigorosa divisão dos eixos vertical e horizontal. Já a articulação simétrica entre os elementos centrais e periféricos das cenas era uma característica de Rafael que procurava alcançar um ideal de beleza harmônico, derivado dos valores da antiguidade clássica. Os pés de Cristo marcam o centro do quadro, sobre o retângulo formado pelos quatro guardas, que gesticulam em diferentes direções. A tampa entreaberta do sarcófago, no centro dessa área, sugere volume e profundidade, assim como as colinas e os montes ao fundo. Os anjos ao lado de Cristo reiteram o gesto que aponta para cima, aludindo à crença em uma existência divina.
— Equipe curatorial MASP, 2015
Por Tomás Toledo
Em 2015 dedicamos toda a programação às coleções do museu, num processo de retomada da instituição, com a recuperação de expografias históricas de Lina Bo Bardi (1914-1992). As obras eram expostas ao lado de documentos sobre elas na mesma parede, algo incomum, pois em geral documentos são expostos separadamente em vitrines. No processo de pesquisa para mostra Arte da Itália: de Rafael a Ticiano, me deparei com vários documentos raros no arquivo do museu, e duas histórias me cativaram especialmente. A primeira envolvia a pintura São Sebastião na coluna, de Perugino, uma de minhas preferidas da coleção italiana, que teve a atribuição de autoria confirmada pelo historiador italiano Roberto Longhi (1890-1970) em carta ao diretor-fundador do museu Pietro Maria Bardi (1900-1999). Ler o manuscrito original de Longhi foi algo muito especial—seu Breve mas verídica história da pintura italiana fora uma importante leitura em minha formação. A outra história é sobre Ressurreição de Cristo, de Rafael (aluno de Perugino), que havia sido comprada em um domingo de Páscoa na galeria Knoedler, de Nova York, por Assis Chateaubriand, fundador do museu, acompanhado por Walther Moreira Salles, um dos doadores, sem um certificado de atribuição de autoria, confiando apenas na experiência e no ‘olho’ de Bardi. Anos mais tarde, foram encontrados no acervo do Ashmolean Museum, em Oxford, dois desenhos preparatórios para pintura do MASP, assinados por Rafael, sacramentando a atribuição sugerida por Bardi.
— Tomás Toledo, curador-chefe, MASP, 2020
Por Laura Cosendey
Hoje completam 500 anos da morte de Rafael, e o MASP possui a única obra do artista localizada no hemisfério sul. No começo do ano levei uma amiga para conhecer a coleção do museu nos cavaletes de vidro de Lina Bo Bardi, e ao ver a Ressurreição de Cristo, de Rafael, ela falou: Nossa, é tão colorido. Isso também sempre me impressiona quando olho essa pintura em relação às outras obras que estão ao seu lado no Acervo em transformação do museu. A obra do MASP é umas das primeiras feitas pelo artista, quando ele tinha entre 16 e 19 anos, e trabalhava por conta própria, não mais no ateliê de outros pintores. A autoria da obra foi confirmada a partir de dois estudos para os soldados, assinados pelo artista, na coleção do Ashmolean Museum, em Oxford. Algo que me fascina no renascimento é um novo colorido proporcionado pela introdução de diversos pigmentos vindos das Américas e do Oriente; é como se as cores funcionassem como especiarias para a pintura. O tom vermelho-carmim, das vestes de Cristo, era obtido a partir de um pequeno inseto, a cochonilha, que solta uma tinta vermelho-púrpura quando é esmagado. Muito mais raro do que um vermelho feito à base de ferro, pigmentos caros costumavam ser reservados aos protagonistas da cena. Laura Cosendey é assistente curatorial do MASP.
— Laura Cosendey, assintente curatorial, MASP, 2020
Por Juliana Barone e Luiz Marques
A Ressurreição de Cristo, também conhecida como Ressurreição Kinnaird, é provável elemento de uma predella desconhecida (Camesasca 1987, p. 74). Adquirida pelo Masp em 1954, às vésperas de suas exposições itinerantes pela Europa e pelos Estados Unidos, mas incorporada ao acervo do Museu somente em 1958, a obra tem sido objeto de intenso debate, notadamente sobre sua atribuição, sobretudo desde 1954. No centro da polêmica está a relação entre esta obra e dois desenhos (Ashmolean Museum, Oxford, p. 505 e p. 506) atribuídos a Rafael por Robinson (1870) e desde então pela totalidade da literatura, com exceção de Morelli e Fischel. De início, esses desenhos foram considerados estudos preparatórios para a Ressurreição encomendada a Perugino pela igreja de San Francesco al Prato em Perúgia (Musei Vaticani), para a qual Rafael teria, segundo o comum juízo, extensamente colaborado. De qualquer modo, estes desenhos foram datados de 1502-1503 por De Vecchi, Dussler, Oberhuber, Ferino-Pagden, Joannides, Gere & Turner e outros, enquanto Cuzin e Camesasca datam-nos de 1499-1500.
Em 1880, Wilhelm von Bode notica sua existência a Cavalcaselle, que, não a conhecendo, não toma partido quanto à atribuição. Já Gnoli, em 1921, sugeria o nome de Mariano di Ser Eusterio (1470-1547?), mas retira-o em 1923. Um dos mais positivos argumentos neste debate sobre atribuição foi apresentado por Regteren van Altena, que em uma comunicação oral (1927) a Fischel nalmente relacionou os dois desenhos Ashmolean à Ressurreição Kinnaird. Vários estudiosos, incluindo Dussler, Beccherucci e Fischel, argumentaram que os desenhos haviam servido às duas Ressurreições (Masp e Vaticano). Outros estudiosos (de Popham e Parker a Longhi, De Vecchi e outros) consideram os desenhos Ashmolean desenhos preliminares apenas para a
Ressurreição Kinnaird. Quando da exposição na Tate Gallery, em Londres, Bardi assumiu a responsabilidade de incorporar a peça recém-adquirida (1954) ao corpus das obras de Rafael, sendo imediatamente seguido por Longhi (1954) e Ragghianti (1954). A atribuição foi aceita por Suida e conrmada por Longhi (1955), que, entre outras considerações, vinculou a obra do Masp ao retábulo de San Nicola da Tolentino (primeira encomenda documentada de Rafael em 1500), devido às similaridades intercorrentes entre a assim chamada Madalena da Ressurreição e a Virgem do referido retábulo. Após Longhi, a obra foi atribuída a Rafael, com mais ou menos convicção, por Parker, Dussler, Beccherucci, Forlani Tempesti, Volpe, Bologna, Gregori, Teza, M. G. Ciardi Dupré, A. M. Brizio, P. L. De Vecchi, Camesasca, Carvalho Magalhães and Ferino-Pagden (1997, conrmada em comunicação oral). A atribuição foi aceita cautelosamente por Marabottini e por Cuzin.
Segundo este último: “le tableautin semble, plus qu’une leçon apprise de Pinturicchio, une leçon qui lui serait donnée. En eet la force et la délicatesse de la mise en place des quatre soldats laissent loin en arrière les gures mannequinées de Pintu ricchio et ne trouvent pas de répondant chez les peintres contem porains, sauf, peut-être, chez Signorelli. La Résurrection de São Paulo apparaît comme une sorte de synthèse, le résumé-bijou de tout ce que la peinture de la n du xve siècle pouvait orir de plus séduisant pour un adolescent; avec une science du dessin et une intelligence de l’espace sans précédent à l’intérieur du milieu ombrien”. Para Knab (1983, p. 58): “Questa piccola tavola non sem bra essere di un’unica mano; oltre alle guardie già descritte, anche la gura del Risorto fa pensare a Ra aello”. Mas a atribuição foi de nidamente negada por Wagner, Gere & Turner, Oberhuber e Joannides, que atribuem a pintura a um artista anônimo, trabalhando a partir de um desenho de Rafael.
O debate crítico relativo à Ressurreição do Masp, fundado nos desenhos Ashmolean e, portanto, na possibilidade de participação de Rafael em obras de Perugino, traz à tona não somente a proximidade da obra de Rafael com a Ressurreição Vaticana, mas também com outras obras de matriz peruginiana: a predella (Ressurreição de Cristo) do políptico da Ascensão de Cristo (Museu de Rouen) e a Ressurreição de Londres (coleção particular), mencionada por W. von Suida (1955). Embora a Ressurreição em questão pertença indubitavelmente a esse grupo de obras, ela apresenta em relação a ele características singulares, seja na construção individual das figuras, seja na orquestração de seus elementos, o que leva Fontana (1987) e Cuzin (1983) a projetá-la para além do universo peruginiano. O acorde interno entre as personagens, não obstante a pequena escala delas, dilata a composição que, somada à graça no desenho, traduz uma original modulação rítmica e um novo sentido espacial. Esta singular capacidade de orquestração espacial é também evidenciada individualmente nas guras. O guardião da direita, em pé, retomado do desenho Ashmolean, descreve um gracioso rodopio ascendente. Essa denição espacial é alcançada com o deslocamento da perna da personagem para trás, movimento que encontra ressonância no alçar do braço oposto e na rotação da cabeça. Trata-se de uma qualidade essencialmente coreográca já evidente no “carrasco” da predella Raleigh (O Milagre de S. Jerônimo que Salva Silvano e Pune Sabiniano, North Carolina Museum of Art), posteriormente desenvolvida no São Miguel Arcanjo (Louvre, Paris) e maximizada na gura de “Heliodoro” (Expulsão de Heliodoro do Templo, Stanza di Eliodoro, Vaticano, Roma). A preocupação com o ponto de equilíbrio gura-espaço circundante, traduzida em uma leve e graciosa estrutura estelar, é uma qualidade tipicamente rafaelesca, alheia ao universo úmbrio, como alheia a esse universo é também a pronunciada perspectiva da tumba e, enm, a orquestração espacial da obra.
À luz dos estudos recentes, evidencia-se que a obra reete algum conhecimento do ambiente orentino. Camesasca (1987) enfatiza a anidade entre o Cristo da Ressurreição do Masp e o de Luca Della Robbia no Duomo de Florença, por sua vez inspirado na Ressurreição Careggi (Bargello, Florença), atribuído ao ateliê de Verrocchio. Também os Anjos da obra do Masp pareceriam exibir uma certa semelhança com dois modelos em terracota de um artista do círculo de Verrocchio (Louvre) – em um dos quais cogita-se, inclusive, a intervenção de Leonardo – e com os Anjos em pleno vôo do retábulo da sala degli Otto, de Filippino Lippi (Uzi). Dal Pogetto (1987) acredita ser possível concluir que já por volta de 1500 o universo de Rafael fosse “rico de experiências muito mais vastas e complexas que os exemplos estreitamente peruginescos, aos quais alguns gostariam de restringir sua formação”, acrescentando que “faz-se necessário pressupor o conhecimento, por parte de Rafael, de uma alternativa, ou seja, de uma arte tendente ao movimento, como a orentina”. A obra do Masp parece ser uma das primeiras nas quais esse vínculo se manifesta. Trata-se, entretanto, não somente de inuxo orentino, mas da coexistência dessa tradição com a poética de Perugino e de Pinturicchio, esta última assinalada no tratamento decorativo do painel, no qual se privilegiam cores fortes e brilhantes, assim como na presença de ornamentos nas armaduras dos soldados, na tampa do sarcófago e na granulação luminosa das árvores. A propósito dessa inuência, Suida (1955) decifra uma das inscrições que se encontram no verso da Ressurreição, reconhecendo no nome “Gioacchino Mignanelli” o primeiro proprietário da obra, provável membro de uma importante família sienense. A inscrição, portanto, vincularia o painel do Masp a Siena, onde justamente Pinturicchio dirigia a decoração em afresco da Libreria Piccolomini.
A obra do Masp, Ressurreição de Cristo, suscita também uma discussão sobre sua datação. A ênfase nas relações com Pinturicchio faria com que Longhi (1955), seguido de De Vecchi (1981), antecipasse a data da Ressurreição inicialmente proposta por Suida (1955), de 1502-1503 para 1501-1502. O vínculo úmbrio também é evocado por Camesasca (1987), que, inserindo-a em âmbito notadamente peruginiano, data-a de 1499-1500. Mais uma vez,
uma referência ba si lar sobre a poética rafaelesca encontra-se em Vasari (1568), para quem Rafael é capaz de unicar diversas tradições coexistentes, ao “captar, mediante um modo intermediário de fazer tanto o desenho quanto o colorido, aquilo que lhe convém, segundo sua necessidade e capricho. Misturando com esse modo alguns outros, que advêm das mais altas realizações de outros mestres, fez de muitas maneiras somente uma, a qual foi sempre tida como propriamente sua”.
— Juliana Barone e Luiz Marques, 1998