Imagem e linguagem
– Teixeira Coelho, Curador Coordenador do MASP
Uma exposição de Shodo num museu ocidental é sempre uma ocasião para repensar hábitos artísticos e práticas culturais. Shodo, se isto não for diminui-lo, é linguagem e imagem intimamente associados. Linguagem que vira imagem, imagem que é linguagem. Na arte ocidental, essa montagem de duas coisas para nós distintas tardou a ocorrer e, quando o fez, representou quase sempre um questionamento à arte, algo que não existe no Shodo. Os cubistas serviram-se de fragmentos da linguagem como um suplemento à imagem, sem valor especial em si mesmos. Os dadaístas inseriram-na em suas composições como forte instrumento de contestação à arte da época. Foi preciso esperar pelos conceitualistas, a partir dos anos 60 do século passado, para que a linguagem assumisse lugar e função destacados na arte ocidental - e outra vez como sinal de contestação à arte preexistente. Mesmo assim, ou por isso mesmo, esse recurso não deixou de ser visto por muitos críticos como sinal de forte crise na arte, que se mostraria, exatamente por usar esse recurso, esgotada. Dupla crise, na verdade, desse ponto de vista: crise da imagem, que não mais bastava a si mesma, e da linguagem, que não conseguiria mais dizer coisas com sentido fora da arte e que, na arte, o fazia ainda menos.
No Shodo, inversamente, imagem e linguagem vêm uma em auxílio da outra, uma complementa a outra, sem que nem uma nem outra contestem o que for. Seria possível dizer que os ideogramas kanji, de que o Shodo com freqüência se serve, já são em si mesmos, em qualquer circunstância, imagens de arte e que o Shodo apenas intensifica e magnifica esse aspecto. É verdade. Mas há um outro aspecto da cultura japonesa que fascina o olho e a mente ocidentais: a recusa em estabelecer categorias firmes que colocam certas coisas de um lado da linha (seja ela qual for) e outras, do outro lado. Assim, no Japão, lenda e história, imaginário e realidade, arte erudita e arte popular, mau gosto e bom gosto, imagem e linguagem parecem estar, do ponto de vista ocidental, de um mesmo lado. A globalização, que antes se chamava internacionalização, introduziu algumas brechas nesse sistema nipônico e algumas categorias firmes se criaram por lá também, erguendo barreiras onde antes não havia nenhuma. É o tributo que paga ao ocidente. Mesmo assim, esse mundo japonês ainda é, para o ocidente, em larga medida um outro mundo. Um mundo que não deixa de lembrar o mundo helênico de Homero e da Ilíada ou da Odisséia, onde essas distinções tampouco existiam tão marcadamente mas que já foi esquecido. Assim, ver outra vez essa convergência entre imagem e linguagem é repensar hábitos culturais.
Não que o enfoque japonês seja melhor ou pior que o ocidental, ou vice-versa. É diferente, e é o quanto basta, se não fossem outras coisas, numa exposição como esta, armada em pleno ano de comemorações do centenário da imigração japonesa para o Brasil. Ver de outro ângulo, ver desde outro ponto de vista: disso é feita a arte e é o que vale a pena buscar nesta mostra, para além da beleza intrínseca do que nela se verá.