O objetivo do curso é abordar a potência política de arquivos na representação, formatação e difusão de corpos nas narrativas nacionais, observando a prática de colecionismo do Outro como ferramenta de controle. Para tanto, o curso trabalha com um conceito ampliado de arquivo, a fim de observar como diferentes repertórios iconográficos se configuram como mecanismos de regulação de identidades. Essa abordagem é feita por meio de um retorno às formações de arquivos no contexto europeu e a migração da prática ao Brasil, primeiro por meio da renovação da disciplina de História Natural em Portugal e, em seguida, pelas instituições fundadas com a mudança da corte portuguesa para o país, e suas continuações na jovem República. Identificada essa trajetória, interessa-nos observar formas contemporâneas de resistência a esse colecionismo. Essa discussão se faz pela proposição de uma virada pós-colonial da chamada arte da memória e seu uso do arquivo como elemento plástico. Pois, se outrora, essa arte centrou-se na reconstrução de uma memória fraturada pelo trauma, o afastamento contemporâneo das abordagens psicanalíticas manejadas para pensá-la permite identificar a não-universalidade dos sujeitos-artistas que a praticam. Esses “corpos dissidentes” nos revelam formatos diversos do dispositivo arquivo e sua operação biopolítica. Mais do que um exame, esses artistas propõem vias para escapar à novas capturas, inclusive aquelas empreendidas pelo sistema das artes.
IMPORTANTE
As aulas serão ministradas online por meio de uma plataforma de ensino ao vivo. O link será compartilhado com os participantes após a inscrição. O curso é gravado e cada aula ficará disponível aos alunos durante cinco dias após a realização da mesma. Os certificados serão emitidos para aqueles que completarem 75% de presença.
Aula 1 – 29.9.2023
O Arquivo como metáfora da violência institucional
A partir do retorno às referências fundamentais sobre o arquivo e sua dimensão política, apresenta-se sua problemática enquanto dispositivo de controle, por vezes pouco evidente, mas de função essencial na elaboração das histórias nacionais e de grande efeito nos seus prolongamentos nas situações do cotidiano. Análise de diferentes formas de “arquivagem”. Apresentação da prática do arquivo nas artes contemporâneas, seu boom nos anos 1990 como elemento de contestação e inovação de discursos oficiais. Apresentação sobre os lugares do arquivo nas práticas artísticas do Sul global. Introdução da hipótese de novos repertórios artísticos contra os arquivos institucionais e de um movimento de mudança epistemológica da arte contemporânea operado por meio desses outros vocabulários e referências.
Aula 2 – 6.10.2023
Capturas do corpo no Atlântico
Apresentação e análise das primeiras estratégias europeias de representação do dito Outro desenvolvidas durante as empreitadas coloniais dos séculos XVIII e XIX. Discussão sobre a concomitância temporal entre a proliferação dos gabinetes de curiosidade, a fabricação e o uso da ilustração como elemento essencial da antropologia moderna, e a entrada de “corpos estrangeiros” no espaço dos museus. Reflexão sobre a relação entre criação de vocabulários científicos visuais, a ilustração de viagem e as técnicas artísticas de representação do diferente. Análise das relações entre a fabricação da imagem da natureza e da imagem do Outro como nova dimensão cognitiva dos estudos científicos. Discussão sobre a elaboração de uma economia visual sobre os “corpos estrangeiros” e sobre o uso da imagem como ferramenta biopolítica sobre os corpos negros.
Aula 3 – 13.10.2023
Documentar um Brasil
Da fundação da Casa do Risco do Jardim Botânico e Museu Real da Ajuda em Portugal, responsável pela formação dos desenhistas que participaram das expedições de exploração das colônias portuguesas no século XVIII à formação do acervo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no século XX, passando pela elaboração da coleção do Museu Nacional de Belas Artes, pela criação do Museu Nacional e da Biblioteca Nacional, e pela coleção do antigo Museu Antropológico Estácio de Lima, apresenta-se um percurso sobre processos de arquivamento iconográfico do “Outro” no âmbito das instituições brasileiras, observando-se os fenômenos de espelhamento das técnicas e metodologias adotadas com as práticas europeias de captura dos “corpos dissidentes”, pelo desenho, pela gravura e pela fotografia. Discussão sobre a popularização, pela via midiática e educacional, de imagens realizadas por viajantes, cientistas e artistas no cotidiano brasileiro.
Aula 4 – 20.10.2023
Artes da memória e virada pós-colonial
Apresentação da noção de arte da memória, sua repercussão a partir dos 1990, seus temas e suas dinâmicas recorrentes. Discussão sobre a inflexão dos conflitos raciais nas artes da memória. Apresentação e análise das transformações de uma arte da memória, e das relações entre memória, história, conflitos politicos e arte contemporânea, a partir das especificidades dos corpos e das subjetividades negras. Análise das renovações de elementos da arte da memória pela virada pós-colonial no que concerne ao uso de documentos, de testemunhos e de ressignificação de espaços de memória, a partir da obra de artistas brasileiros.
Aula 5 – 27.20.2023
Performar (contra) o Arquivo
Reflexão sobre as estratégias de artistas contemporâneos contra os arquivamentos, mais especificamente, sobre práticas performáticas, a performatividade constante do artista e as pluri-identidades como astúcia contra a captura dos corpos e identidades pelo sistema da artes. Discussão sobre as transformações de um glossário de gestos históricos em movimentos de contra-arquivagem nas práticas performáticas no Brasil. Retomada e discussão da hipótese sobre uma mudança epistemológica na genealogia da prática da performance na arte contemporânea a partir da instauração de outros arquivos.
Vivian Braga dos Santos é pesquisadora do núcleo “Histoire de l’art mondialée” no Institut National d’Histoire de l’Art (INHA, França), e doutora em Artes (História, Crítica e Teoria da Arte) pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado sanduíche realizado na École des Hautes en Sciences Sociales e estadias de pesquisa na Universidad Complutense de Madrid e na Sfeir-Semler Gallery (Beirute). Seus trabalhos abordam um amplo leque de questões sobre as relações entre arte contemporânea, conflitos políticos, história e memória em diferentes contextos geopolíticos. Nesse recorte, criou o conceito função-historiador que discute um novo modelo de autoria artística para uma arte da memória e seus vínculos autobiográficos. Atualmente, ela desenvolve uma pesquisa sobre arte e raça no Brasil contemporâneo a partir de dois núcleos principais de investigação: o arquivo e a performance.