Paul Gauguin viveu seus primeiros anos em Lima, no Peru. Depois de voltar à França, integrou a Marinha entre 1865 e 1871. Foi agente de câmbio e, ao mesmo tempo, começou a pintar como amador. Entre 1880 e 1886, participou de mostras do grupo impressionista, decidido a se dedicar exclusivamente à pintura. Iniciou, assim, um período de dificuldades materiais e familiares que o levaram a buscar uma alternativa à dura realidade da metrópole moderna. Primeiro, foi estudar nos campos da Bretanha. Depois, passou uma temporada com Van Gogh (1853-1890) na Provença, onde ocorreu a dramática ruptura entre os dois artistas. De 1895 até sua morte, morou no Taiti e nas Ilhas Marquesas, de onde absorveu as referências estéticas que reorientaram seu estilo. Essa mudança estilística não deve ser lida como uma fuga em direção ao exótico, mas sim como uma busca consciente de valores formais alternativos à arte ocidental, procurados em inúmeras fontes e reelaborados com grande habilidade compositiva. Em Autorretrato (perto do Gólgota), a luz intensa destaca o olhar e dá um tom profético e misterioso. O traje azul‑ claro contrasta com o fundo aparentemente composto por musgos e pedras. Há uma única brecha no canto superior esquerdo, deixando ver as árvores distantes. O retrato foi encontrado entre os pertences de Gauguin após sua morte. Dos dois lados da tela aparecem rostos que se misturam com o fundo, como se fossem assombrações. Na tela, há uma inscrição que menciona o Gólgota, local da crucificação de Cristo. A alusão à Paixão se combina com a presença de figuras da mitologia da Polinésia.
— Equipe curatorial MASP, 2017
Por Laura Cosendey
Visitei pela primeira vez o Centro de Documentação do MASP para pesquisar sobre o Autorretrato (1896) de Paul Gauguin (1848-1903) produzida quando o artista vivia no Tahiti. Entre documentos relativos a trâmites da compra, laudos museológicos, participação em exposições, encontrei na pasta recortes de jornal reportando a chegada da obra no Brasil, quando foi adquirida pelo MASP. Antes de ser levada ao museu, a pintura foi exposta no Rio de Janeiro, num evento realizado na rua João Borges, na Gávea, bairro da Zona Sul – uma rua conhecida por seus casarões. A matéria, intitulada Na selva tropical, anunciava como a alta sociedade carioca prestigiou a obra, reforçando como o jardim com mangueiras e jaqueiras da residência criavam o cenário ideal para a origem exótica da pintura. Dentro da casa, a obra foi apresentada contra uma parede decorada com motivos de folhagens. Sou do Rio de Janeiro, e acredito que como muitos cariocas, posso imaginar bem a cena. No arquivo do MASP, outros documentos falavam sobre a proveniência da obra encontrada na casa onde Gauguin vivia. Foi uma das poucas telas que o artista guardou até sua morte em 1903. Gauguin morreu endividado e seus bens foram leiloados para cobrir o que devia. Suas pinturas foram cotadas em valores irrisórios (uma máquina de costura valia 20 vezes mais que uma das telas). O contraste entre essas duas realidades – o evento de elita carioca e a intimidade do artista no Tahiti – me faz pensar como cada obra de arte atravessa os tempos e constrói uma história própria para além do que vemos ali na imagem.
— Laura Cosendey, assistente curatorial, MASP, 2020
Por Luciano Migliaccio
O Auto-Retrato (Perto do Gólgota), encontrado entre os pertences de Gauguin após sua morte, foi leiloado e comprado por Victor Segalen, oficial e médico do navio “La Durance”, juntamente com outras sete obras do pintor. O fato de Gauguin ter guardado este quadro na própria casa desde 1896 sugere seu grande apego pela obra. Como muitos artistas, de Dürer a Rembrandt, Gauguin usa o auto-retrato como documento da própria situação existencial. O quadro foi pintado na época em que escrevia a Daniel de Monfreid: “Je suis tellement démoralisé, découragé, que je ne crois pas à des malheurs plus grands pouvant survenir”, desabafo que esclarece a inscrição e título da obra. Uma auréola ilumina a cabeça do pintor. No fundo escuro, duas figuras aparecem na sombra, à direita uma taitiana de frente, a Madalena deste Cristo, à esquerda um vulto de perfil que pode ser um ídolo. Este vulto é semelhante à primeira estátua realizada por Gauguin, Oviri, que o artista denominava também de “A assassina”, inspirada no culto indígena e também em lembranças de Seraphita de Balzac, como explica o próprio artista em nota referente a um desenho para esta escultura.
Gauguin sintetiza nessa pintura a religiosidade cristã e o culto dos povos primitivos. O rosto magro denota uma expressão enigmática. A túnica clara e luminosa atrai a atenção para o olhar que parece vir do interior e ver profeticamente além do mundo da realidade. Para Boudaille (1964, p. 265), a força da pintura é tamanha que consegue representar de maneira tangível o horror da situação, um horror talvez comparável àquele das últimas palavras do protagonista de Coração de Trevas de Joseph Conrad.
— Luciano Migliaccio, 1998