Ingres foi aluno de Jacques-Louis David (1748-1825), figura central do neoclassicismo francês. Ainda jovem, afirmou-se recebendo importantes encomendas oficiais do regime napoleônico. Em 1806, viajou a Roma, onde permaneceu até 1820, quando se mudou para Florença. Na Itália, tornou-se um dos retratistas mais requisitados. Voltando a Paris em 1824, consagrou‑se líder da escola clássica francesa. Eleito membro da academia, abriu um ateliê muito concorrido e, durante a vida, foi considerado pelo meio oficial o maior artista francês. Seus inúmeros desenhos mostram como Ingres possuía uma enorme erudição que se estendia da pintura dos vasos gregos à arte maneirista. Soube reunir todas essas referências em suas composições por meio do desenho, pensado de forma puramente decorativa, ou seja, em função do equilíbrio formal e sem preocupações naturalistas. Duas das obras de Ingres do MASP, Cristo abençoador (1834) e A Virgem do véu azul (1827), representam temas religiosos. Historicamente, os gestos dessas figuras remontam a narrativas bíblicas específicas, mas também têm a função de orientar os fiéis à devoção. As mãos de Cristo, abertas e voltadas para cima, eram assim retratadas nos primórdios do cristianismo; era como ele ensinava a rezar o pai-nosso. Já as mãos de Maria, juntas, seguem a tradição medieval e manifestam humildade e submissão.
— Equipe curatorial MASP, 2015
Por Núcleo de Conservação do MASP
O Cristo abençoador (1834) e A Virgem do véu azul (1827), ambas do acervo do MASP, são duas pinturas a óleo sobre tela, esticadas em chassis com cunhas, realizadas pelo pintor francês Jean-Auguste Dominique Ingres . Em 2019, foram feitas análises científicas nas duas pinturas pelo Núcleo de Conservação do museu e pelas equipes do Instituto de Física da USP (IFUSP) e da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Os exames permitiram elucidar detalhes sobre a técnica pictórica e os materiais utilizados pelo artista, bem como sobre as intervenções de restauro antigas e o estado de conservação de ambas as obras. A reflectografia no infravermelho (realizada pela equipe do IFUSP) é uma técnica na qual a radiação penetra as camadas mais externas da obra, como a pintura e o verniz, até chegar à de preparação, trazendo informações tais quais desenhos subjacentes e outros elementos invisíveis ao olho nu. Era comum que os artistas realizassem desenhos preparatórios antes de aplicar as camadas de pintura; essa primeira intenção (ou etapa criativa) poderia ser modificada ao longo do processo. As obras de Ingres do MASP apresentam desenhos preparatórios bastante interessantes, já que, em ambas, o pintor parece ter modificado a composição original durante a realização: observa-se, por exemplo, que o artista mudou o braço esquerdo da Virgem para colocar a mão em posição de prece. No caso do Cristo, observamos um desenho bem evidente nas mãos e na túnica, com pequenos traços marcados. Também é possível inferir que o artista teria pensado, num primeiro momento, em pintar o Cristo sem a túnica devido a presença do desenho bem discernível do torso nu, que foi depois oculto pela vestimenta.
— Núcleo de Conservação do MASP, 2021
Por Luciano Migliaccio
A obra Cristo Abençoador trata-se do pendant da Virgem do Véu Azul, encomendada igualmente pelo marquês de Pastoret. A cabeça é muito semelhante a um estudo preparatório da figura do Redentor na Entrega das Chaves a São Pedro (Montauban, Musée Ingres). O rosto apresenta características inspiradas nas obras tardias de Rafael, como na Transfiguração da Pinacoteca Vaticana, interpretado porém por meio do modelo de Nicolas Poussin da série Sete Sacramentos.
As mãos levantadas e de palmas abertas constituem a pose tradicional do Cristo Pantocrator (Edelstein ed. 1984, p. 132). De fato, o Cristo levanta as mãos num gesto semelhante ao daquele que ora na iconografia clássica e paleocristã, em oposição à pose da Virgem, representada no pendant, rezando de mãos juntas. O tema comum parece ser o da oração: a Virgem, que junta as mãos no gesto de submissão medieval, evoca o Magnificat proposto como modelo de devoção feminino, e o Cristo que abre os braços refere-se à oração que ele próprio quis ensinar, o Pater Noster. Seria interessante aprofundar as relações entre Pastoret, o próprio Ingres e o movimento católico francês da época, inspirado no exemplo de Chateaubriand. As duas imagens isoladas num fundo abstrato aproximam-se dos ícones bizantinos com um traço de arcaísmo, talvez inspirados nos nazarenos e nos puristas que Ingres conheceu na Itália. Esse lado da produção do mestre não vai ficar sem ecos na pintura religiosa francesa e italiana das décadas posteriores, em Ary Scheffer, em Consonni ou em Podesti.
— Luciano Migliaccio, 1998