No encontro entre relatos familiares e pesquisa documental, Aline Motta instaura um campo investigativo para trabalhar as narrativas de sua ancestralidade, seus antepassados e origens, alcançando contextos coletivos
e reinventando memórias históricas das famílias no Brasil. Suas obras partem de uma sentença‑chave que nos faz refletir acerca da fragilidade dos discursos tidos como oficiais: “O quanto de ficção existe numa
realidade?”. Entendendo o tempo como um movimento cíclico, Aline se movimenta através de indícios documentados pela história oficial, debruçando‑se em arquivos públicos e privados, viagens de campo, relatos orais,
resquícios, pistas, hipóteses ou ficcionalizações.
Filha natural(2018‑2019) conta a história de Francisca, sua tataravó, que foi escravizada em uma fazenda cafeeira em Vassouras (Rio de Janeiro). Um atestado de óbito encontrado durante pesquisas sobre essa cidade e as lembranças
fragmentadas de parentes próximos trazem à tona uma análise inédita da iconografia da escravidão, que costura a memória pessoal de sua família com uma memória coletiva, cuja narrativa foi retraçada pela artista
através de suas investigações em documentos de época e arquivos públicos. Ao criar uma sobreposição de tempos entre o período imperial e o presente, Aline evidencia a relação ancestral que existe entre as mulheres
negras, por compartilharem histórias em conexão, iniciando‑se na África, passando pela diáspora, escravidão e a realidade atual da população negra no Brasil. Na obra, uma líder comunitária de Vassouras, Claudia
Mamede, aparece como um fantasma que observa o passar dos anos em uma icônica fazenda dessa região, possivelmente, a mesma retratada em fotografias históricas do local de morada dos antepassados da artista. A
necessidade de reviver existências que foram apagadas da história, valendo‑se de alto rigor formal e da liberdade na experimentação de linguagens, que migram entre literatura, livros de artista, vídeo, fotografia e
performance, faz da obra de Aline uma evidência das urgências do presente, um tempo em que nossas histórias precisam ser contadas por aqueles que foram e ainda são forçosamente silenciados.
Por Patricia Mourão
Há tantos documentos quanto são os que faltam em Filha natural, filme de Aline Motta que integra o acervo MASP. Há fotos, inventários, testamentos, certidões de óbito, fotografias, jornais, relatos de viajantes — boa parte deles relativos à vida, aos bens, ao sangue e à
linhagem do Barão de Ubá, cuja família enriquecera às custas do tráfico e comércio de escravizados. Sobre eles, sobre seu sangue e linhagem, porém, faltam documentos e imagens da época; carece-se de documentos que
não tenham sido feitos para garantir os direitos e as narrativas daqueles que os escravizaram. É transitando entre o excesso e a escassez de vestígios, subvertendo ou ampliando lacunas e apagamentos, deslocando
sentidos dados, redirecionando o olhar e promovendo dobras entre o presente e o passado que Aline Motta tece
Filha natural. O filme resulta da busca da cineasta pelos vestígios de sua tataravó, Francisca, escravizada na Fazenda de Ubá, de quem não há registro de nascimento — filha natural de quem? Em suas escavações, a artista encontra
o atestado de óbito de uma Francisca, não se sabe se a sua, e o mesmo nome listado em inventários de bens, ao lado de outros escravizados. Entre tantas perguntas sem resposta e fios perdidos, Motta encontra ainda
Claudia Mamede, uma líder comunitária da região, cuja avó assemelha-se à sua própria bisavó — seriam ambas descendentes da mesma Francisca? Fabulando um parentesco possível e afirmando a ancestralidade em comum, as
duas revisitam documentos, imagens e o lugar daquela violência e apagamento, carregando chamas e memórias de todas as vidas e fantasmas que não se documentaram, mas que permanecem acesas e presentes.