Victor Meirelles frequentou a Academia Imperial de Belas‑Artes, no Rio de Janeiro, e conquistou o prêmio de viagem à Europa em 1853, estudando em Roma, Florença e Paris. Foi um dos responsáveis pela consolidação da pintura histórica no Brasil durante o reinado de dom Pedro II (1825-1891), que foi de 1841 a 1889, e teve, entre seus alunos, artistas como Eliseu Visconti (1866‑1944) e Almeida Júnior (1850‑1899). Moema apresenta a personagem do poema épico Caramuru (1781), de frei Durão (1722‑1784), morta na praia depois de afogar‑se enquanto seguia, a nado, o navio de Diogo Álvares, sua paixão, que retornava a Portugal. Moema foi um tema que teve grande sucesso na arte, na literatura e na música da época. O assunto é próprio do romantismo indianista, que busca valorizar os temas nativos na história nacional, dentro de uma visão idealizada que escondia as barbáries da colonização. Na pintura do MASP, Meirelles retomou o tema europeu do nu feminino na paisagem em uma dimensão trágica, representando Moema como uma Vênus indígena. A obra aponta para o conflito entre a imagem do indígena como herói da nação, construída durante o Império, e a violência praticada contra as populações nativas e suas culturas.
— Equipe curatorial MASP, 2015
Por Equipe curatorial MASP
A pintura Moema, de Victor Meirelles, apresenta a personagem do poema épico Caramuru (1781), de frei Durão (1722‑1784). O texto narra o trágico destino da indígena, morta na praia depois de se afogar enquanto seguia, a nado, o navio de Diogo Álvares, sua paixão, que retornava a Portugal. A história de Moema teve muitas representações na arte, na literatura e na música da época. O assunto é próprio do chamado romantismo indianista, que buscava valorizar os temas nativos na história nacional a partir de uma visão idealizada e que escondia as barbáries da colonização. Na pintura do MASP, Meirelles retomou o tema europeu do nu feminino na paisagem em sua dimensão clássica, representando Moema como uma espécie de Vênus indígena. Tal representação, entretanto, condiz com o olhar dispensado ao corpo indígena naquele contexto, isto é, tido como passivo e entregue ao homem branco — visão que se confirma quando conhecemos a história de Moema. Atualmente, a pintura encontra-se exposta no Acervo em Transformação do museu ao lado de Natureza morta 1, do multiartista contemporâneo Denilson Baniwa. Em seu trabalho, este artista põe justamente em destaque corpo e território, dois alvos do colonialismo europeu. Desse modo, o diálogo entre as obras de Meirelles e Baniwa evidencia-se uma vez que ambos os corpos indígenas ao chão evocam o genocídio dessas populações, que atravessa os séculos: enquanto Moema aponta para o conflito entre a imagem do indígena como herói da nação, construída durante o Império, e a violência praticada contra as populações nativas e suas culturas, Natureza morta 1 mostra como um mesmo sistema de dominação continua, por mãos brasileiras, aquilo que os primeiros portugueses aqui aportados fizeram com a maior parte dos povos originários.
— Equipe curatorial MASP, 2021
Por Eugênia Gorini Esmeraldo
A obra Moema, como informa por carta, em 1967, Donato Mello Júnior “tem uma história dolorosa... Esteve na Pinacoteca da Escola Nacional de Belas-Artes até outubro de 1929, quando foi retirada... porque o Governo não achou nunca alguns contos para comprá-la. No Museu Nacional de Belas-Artes (que é de 1937) nunca esteve exposta”, contrariando a informação que constava dos dados do catálogo do Masp de 1963. É ainda Mello Júnior que informa que já em 1866 o diretor da Academia de Belas-Artes, Conselheiro Tomás Gomes dos Santos, comentava: “Obra de maior valor, porque reúne em grau muito subido todas as qualidades da grande pintura, é a Moema do Sr. Victor Meirelles de Lima. Desenho, colorido, transparência aérea, efeitos de luz, perspectiva, exata imitação da natureza em seus mais belos aspectos, elevam esta composição magistral à categoria de um original de grande preço. O assunto, todo nacional, é uma das nossas lendas mais tocantes”. Ele se refere a Diogo Álvares, aclamado pelos índios como Caramuru ou “Filho do Trovão”, conquistador que volta à Europa de navio com sua esposa indígena, Paraguaçu, deixando no Brasil várias outras, apaixonadas. Algumas delas nadam seguindo o navio, e uma entre elas, Moema, perece na tentativa de acompanhar a nau. Meirelles, com um olhar romântico, retrata o corpo da jovem, deitado à beira do mar, numa pose sensual, com a tanga presa apenas a um dos lados dos quadris, a perna esquerda apoiada numa rocha e os cabelos soltos espalhados na areia. O mar aparece difusamente por detrás, e ao longe percebe-se a mata, onde sobressaem algumas árvores e palmeiras. A figura bem desenhada demonstra a maestria de Meirelles, que também pode ser vista no desenho preparatório conservado no Museu Nacional de Belas-Artes.
Conforme aponta Coli, o agudo crítico Gonzaga-Duque assim comentou a obra em 1887: “...pintou com muita delicadeza a ‘Moema’ posto que sem verdade, mas cingindo-se ao ideal de seu tempo, às aspirações artísticas de sua época. Digo sem respeito à verdade porque para uma afogada cuspida à praia, as formas da índia estão demasiado macias, e a cor ainda é muito quente...”. Coli, traçando um paralelo entre a obra e o poema de Charles Baudelaire, La Chevelure, assim analisa a obra: “Da mórbida necrofilia à úmida e negra medusa dos cabelos, perfumada por odores tropicais saturados de óleo de coco; da água acariciante à ambígua imobilidade do corpo soberbo, uma sensualidade perpassa pelo poema e pela imagem. Moema concentra fortes pulsões desabrochadas em As Flores do Mal. Estes anos de 1860 insistem no corpo feminino alongado, com as forças abandonadas, exposto, entregue. Corpos ofertos, tomados pela gravidade, inertes como as longas cabeleiras esparramadas. (...) Moema é a mais baudelairiana de todas. Nela se encontram os perfumes capitosos das plagas longínquas, a cor acobreada capaz de acionar um erotismo baseado no estranhamento. Nela o pressuposto do navio que se vai. Nela, ainda, a dádiva do corpo magnífico que é quase cadáver, o repouso e a morte entrecruzados.(...) Os volumes poderosamente sintéticos, geometrizados, do corpo de Moema, o sombreamento definido com poucas transições, o contorno implacável, tornam espiritualizado – não há outra palavra – o insistente tema erótico. (...) A tela conjuga a grande obsessão sensual do tempo, que se repete incansavelmente nas artes internacionais, com o romantismo indianista que se carrega aqui de maresias longínquas. Porque Meirelles opera a transfiguração estilística capaz de conduzir a imagem para a fronteira tênue entre a sedução sensível e a beleza da forma”.
— Eugênia Gorini Esmeraldo, 1998
Por Kássia Borges Karajá
Querer estar num lugar e num momento que não é o seu é o fio que liga Moema ao seu tempo. Idealizada na cor da pele, no corpo curvilíneo sensual, em volta de uma natureza bela e organizada, a obra mostra uma visão romântica de alguém que nunca sentiu o que é o cheiro e o sofrimento de um colonizado. Quem já adentrou uma floresta ou aldeia (só para lembrar que nem todo indígena vive na floresta) e conviveu com os povos originários poderia entender que o amor que mata é uma invenção dos não-indígenas. Viver na floresta, na aldeia, ou fora do mundo branco, requer um outro tipo de poesia e de sobrevivência. Nesta cena não houve beleza nas imperfeições. Aqui se morre de susto, de bala ou de vício. A verdade não está nas penas cobrindo a púbis de Moema, nem nos cabelos negros (como se estivesse dormindo para enganar ou negar a violência sofrida), tampouco no inconsciente de Victor Meirelles com suas possíveis "boas intenções", mas no que não foi dito ou colorido a tinta à óleo. A verdade está nas hostilidades que vieram antes, durante e depois. O desrespeito e as mortes das mulheres nativas que ainda existem e persistem são imagens e memórias que estão cravadas nos nossos sonhos e pesadelos mais íntimos. Isso implica no jogo hipotético do que vemos face ao que nos olha e não conseguimos enxergar. Essa imagem, contudo, nos concede uma objetividade, a de construir e sonhar nossos próprios devaneios e vontades. Queremos despertar nossas dores verdadeiras para um público aberto a sonhar outras possibilidades.
Kássia Borges Karajá, Curadora-Adjuntos de arte indígena, 2022