Por Mateus Nunes
Em O sacrifício de Abrahão, Portinari nos apresenta a dualidade da paternidade: por mais que se seja pai, se é sempre filho. Abrahão é posto em um desafio épico, como narra o livro de Gênesis: é pedido por Deus que sacrifique seu filho, Isaac, como prova de amor divino. As explícitas relações com a Guernica (1937) de Picasso, além de materializadas nos aspectos geométricos, cromáticos e figurativos da pintura, também são expostas na energia caótica do quadro de grandes dimensões — como o ato de Abrahão —, intensificando todos os gestos. Essas dinâmicas são ainda mais evidentes ao compararmos com o quadro de mesmos tema e título pintado por Portinari em 1939 e com outras obras da sua Série bíblica. As perspectivas múltiplas do cubismo, além de espaciais, são temporais: a energia potencial do punhal que está a ponto de matar, do filho que flutua ao abraçar tenramente o pai, do cordeiro que se debate ao chão. A síntese imaculada do cristianismo: amor é sacrifício. Congela-se um oceano de movimentos. Os olhos do filho denunciam a entrega, enquanto os do pai alarmam a angústia — e, ao mesmo tempo, o espanto, como se a desacorrentasse de um pesadelo. Há, entretanto, uma chave que muda a direção da leitura da obra: seu título. A de Portinari chama-se O sacrifício de Abrahão, e não O sacrifício de Isaac, como em Rembrandt e Caravaggio. Aqui, é Abrahão quem sofre por ter que sacrificar o filho, rebatendo-se na dor da perda, mas que, ao último segundo, é recompensado com o alívio. A dinâmica do sofrimento inverte-se, a dialética afetiva prevalece: o pai — que também é filho, num intercâmbio de amor — acredita e ama incondicionalmente, sem questionar.
— Mateus Nunes, doutorando em História da Arte pela Universidade de Lisboa, 2021
O Último Baluarte – A Ira das Mães é a primeira obra da Série Bíblica, composta de outras oito composições de grandes dimensões, encomendadas a Portinari por Assis Chateaubriand para a sede da Rádio Tupi de São Paulo. Ela reflete de modo particularmente evidente o impacto de Guernica (1937) sobre Portinari, que ele deve ter visto em Nova York, quando, após executar os quatro painéis da Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso de Washington, segue para Nova York, onde pinta o retrato da mãe de Nelson Rockfeller. É em vão, e não sem atléticos distinguo, que a crítica coeva procura absorver o portentoso ciclo de Portinari à imagem de pintor “brasileiro” por excelência com que se o viera consagrando. Mário de Andrade não hesita em ver no ciclo um processo psíquico contínuo de assimilação do outro, de transformação das soluções alheias em uma pintura própria e original, no arco que leva de O Último Baluarte às Trombetas de Jericó. Para Sérgio Milliet, a diferença entre Picasso e Portinari é a que intercorre entre a “inteligência pura” e a “inteligência do coração”... Ambas as distinções, de Mário de Andrade e de Sérgio Milliet, parecem incapazes de ocultar um mal-estar intelectual e ideológico diante do herói nacional convertido em súcubo, hipnotizado pelo chef-de-file da École de Paris. Mais interessante, embora a nosso ver não inteiramente satisfatória, é a hipótese recentemente sugerida por Fabris (1996, p. 103), que transfere este mal-estar para a própria consciência do artista. Para a estudiosa, com efeito, Portinari “penetrado pelo drama da guerra, em crise diante de sua imagem de ‘artista oficial’, (...) teria tentado solucionar, pela aproximação a Picasso, a inquietude que havia tomado conta de sua vida”. Fabris apóia-se provavelmente em uma passagem de Portinari, posta em destaque pela própria autora em seu livro sobre o artista, na qual ele declara: “Picasso fulmina-me... Eu tinha de fazer O Último Baluarte. Se não o tivesse feito, isso teria sido muito ruim. Era preciso fazê-lo e esperar pelo que acontecesse. Ou me afundaria ou conseguiria dar o salto”.
O “salto” que Portinari dá com o ciclo em questão não é o de “nacionalizar” Picasso. É na realidade a culminância de um processo de amadurecimento artístico, processo que lhe permite pela primeira vez compreender profundamente a genialidade de Picasso e, assim, situar-se de pleno na arte de nosso século. Como tantos outros grandes artistas brasileiros, desde Aleijadinho, Portinari foi tanto mais grandioso quanto melhor imitou, como, de resto, a arte é, salvo em casos esporádicos, tanto mais grandiosa quanto mais sincera e profundamente se consagra à imitação.
— Autoria desconhecida, 1998