Há algo em comum entre os personagens envolvidos em Paul Alexis lê um manuscrito a Zola, do pintor francês Paul Cézanne. Os dois retratados citados no título, tal como o artista, eram originalmente de Aix-en-Provence, cidade no sul da França, e viviam em Paris quando a pintura foi feita. Paul Cézanne era amigo de infância de Émile Zola (1840-1902), renomado escritor da segunda metade do século 19 que ficou conhecido por Germinal (1885) — romance que retrata de forma bastante realista as duras condições de vida dos trabalhadores de uma mina de carvão. Em Paris, Paul Alexis (1847-1901), também escritor e grande admirador de Zola, passou a frequentar a casa do escritor, local onde a cena da pintura acontece. A obra foi encontrada no porão de Zola em 1927, após a morte de sua esposa. É provável que Cézanne não tenha conseguido terminá-la devido à Guerra Franco-Prussiana, que levou o artista e o escritor a se refugiarem em sua cidade natal. As vestes de Zola, assim como o assento no qual ele está recostado, foram deixadas ainda esquematizadas, em traços sem aplicação de tinta. Diversas partes da pintura deixam à mostra as marcas das pinceladas, criando fortes manchas de cor. Também é curioso notar como o paletó de Alexis se funde com o encosto da cadeira. Nesse período, Cézanne usava uma paleta mais escura do que em suas paisagens e naturezas-mortas mais conhecidas. Esta é uma das cinco telas de Paul Cézanne no acervo do MASP. Trata-se de uma pintura-chave na obra do artista, e por isso é frequentemente pedida em empréstimo para mostras de Cézanne. Nos últimos anos, esteve no Musée d’Orsay, em Paris, em 2017, e na National Gallery of Art, em Washington, em 2018.
— Laura Cosendey, assistente curatorial, MASP, 2020
Por Felipe Martinez
Um homem lê um manuscrito para outro que, como um mestre, avalia o que está sendo lido. O leitor é o poeta e escritor francês Paul Alexis (1847-1901), que submete seu trabalho à avaliação de Émile Zola (1840-1902), um dos maiores autores franceses do século 19. O pintor, Paul Cézanne (1839-1906), é o personagem oculto dessa cena, pintada entre 1869 e 1870. Zola e Cézanne tinham uma relação bastante próxima, saíram juntos do sul da França para tentar a vida na capital. Enquanto Zola conheceu o sucesso desde cedo, Cézanne só seria reconhecido ao final de sua vida. A amizade entre eles ficou abalada após a publicação do romance A Obra de Zola, em 1886, cujo protagonista — um pintor fracassado — foi parcialmente inspirado em Cézanne. A pintura do MASP é uma das poucas obras em que vemos Zola representado pelos pincéis do amigo. Ela foi abandonada pelo artista em razão da Guerra Franco-Prussiana e encontrada na casa do escritor em 1927. Nela, estamos longe das pinturas que inspirariam Picasso no começo do século seguinte. Suas cores fazem pensar mais em Manet, que também pintou Zola. Outra obra, feita por Cézanne pouco antes, mostra a mesma cena. Nessa outra composição, evoca-se os mestres holandeses, o clima é menos solene do que na pintura do MASP, na qual a liderança de Zola, conhecido por suas posturas públicas corajosas, fica evidente. Cézanne, ao contrário, tinha seu processo artístico permeado pela dúvida, como pontuou Merleau-Ponty. Curiosamente, na pintura do MASP, é o corpo de Zola que aparece inacabado com pinceladas hesitantes.
— Felipe Martinez, doutor em História da Arte, Unicamp, 2021
Por Luciano Migliaccio
No quadro do Masp Paul Aléxis Lê um Manuscrito a Zola, vemos Zola recebendo no pavilhão de sua casa, na rue Condamine, um dos seus primeiros admiradores: Paul Alexis (1847-1901), jornalista e escritor de romances, defensor constante do impressionismo e do neo-impressionismo, que consagrou ao chefe do naturalismo um importante estudo em 1882. A tela foi encontrada num depósito da casa de Zola, em Médan, após a morte da mulher do escritor, em 1927. Deve ter sido pintada entre setembro de 1869, época em que Paul Alexis chegou a Paris, e agosto de 1870, data em que Paul Cézanne e Émile Zola deixaram Paris e seguiram para o sul da França. Numa coleção particular em Zurique há uma outra tela representando uma figura que lê no interior da casa de Zola, datável, segundo Gowing, provavelmente entre 1867 e 1869 (1987/1988, p. 156). São conhecidos três desenhos preparatórios relativos a essa última obra. O primeiro pertenceu à coleção de Sir Kenneth Clark, os outros dois não têm localização conhecida. Wayne Andersen ressalta nos desenhos a evolução da composição de Cézanne, a partir de modelos da pintura holandesa de interiores, como os de De Hooch. O quadro do Masp apresenta uma situação e um estilo radicalmente diferentes: a composição tem um desenvolvimento horizontal em vez de vertical, as figuras estão colocadas no exterior, sentadas no chão, numa pose que lembra as pinturas de Manet, assim como a construção de amplas áreas achatadas e a escolha das cores. A idéia da composição talvez seja do próprio Zola, pois ele sempre quis representar o papel de fundador de uma escola e teve o hábito, desde sua juventude, de reunir seus amigos artistas e literatos, Cézanne, Valabrégue, Solari, Alexis, todos oriundos da mesma região de Aix. Cézanne deixou este quadro por terminar, talvez por causa do início da guerra entre a França e a Prússia, que o obrigou a refugiar-se na Provença.
A pose de Zola lembra a de um déspota oriental (Howard) ou de um filósofo, a cabeça e o torso deixam transparecer o grão da tela e o desenho livre que formou a base da composição de Cézanne. Muitas das formas visíveis nas partes acabadas eram destinadas a ser modificadas de acordo com as exigências do artista, que improvisava diretamente na tela a partir de uma idéia inicial.
— Luciano Migliaccio, 1998