Chardin foi um dos grandes nomes da pintura francesa do século 18, tratando de forma profunda e poética os temas da vida cotidiana. Em 1728, ganhou o título de pintor de naturezas‑mortas na Académie Royale de Paris. Com o tempo, o artista passou a produzir pinturas de gênero, feitas para as casas de nobres e burgueses — retratos, cenas domésticas, crianças ou casais enamorados. O menino em Retrato de Auguste Gabriel Godefroy era filho de um joalheiro e banqueiro para quem Chardin fez muitos outros trabalhos. Na cena, ele observa o pião girar, distraindo‑se dos estudos e deixando de lado os livros, o tinteiro e o pergaminho sobre a escrivaninha. A luz extraordinária que recai sobre o garoto traça uma linha diagonal na parede ao fundo, emprestando volume à composição. A gaveta entreaberta em primeiro plano, com um prolongador de giz, confere profundidade ao móvel. O tema da educação infantil era recorrente na pintura francesa do período. O pião é entendido como símbolo da inconstância do caráter infantil e da sorte, do equilíbrio instável entre as várias forças que governam o destino humano perfeitamente representado na brincadeira da criança.
— Equipe curatorial MASP, 2015
Por Olivia Ardui
O tempo parece suspenso à inclinação do pião em rotação. É neste pequeno e singelo objeto que todos os elementos da pintura convergem, a começar pelo menino imerso e concentrado no movimento circular do brinquedo, mais que nos livros que se encontram na mesa. A sútil iluminação e o fundo quase abstrato destaca o rosto do protagonista e seus olhos fitados nessa micro-ação. Os retratos de crianças entretidas em jogos por Chardin (1699–1779) sempre me provocam uma quietude e introspecção, quase uma vontade de segurar meu fôlego que, por desventura, poderia interferir no delicado giro do pião, derrubar o frágil castelo de cartas, estourar a bolha, ou pior, interromper essas cenas íntimas com minha presença intrusa. Lembro dessas obras nessa quarentena, quando o tempo parece se dilatar, pequenas brechas se abrem no cotidiano para introversão e uma fascinação quase pueril por pequenos detalhes da casa. Fica evidente o privilégio de poder me permitir tais devaneios, privilégio de que sem dúvida as crianças que Chardin representava também usufruiam. Se seus ostentosos trajes já são indícios de um pertencimento a elite, o fato de serem retratadas é uma confirmação de seu prestígio social. É o caso de Auguste Gabriel Godefroy, assim como de seu irmão mais velho, cuja ascendência como filhos de um banqueiro e joalheiro os permitiu uma sobrevida em pinturas presentes em coleções dos mais renomados museus.
— Olivia Ardui, curadora assistente, MASP, 2020
A versão conservada no Louvre de Retrato de Auguste Gabriel (Jeune Ecolier qui Joue au Toton) foi exposto no Salon de 1738 (n. 116) com o título Portrait du Fils de M. Godefroy, joaillier, appliqué à voir tourner un toton. Em L’art du XVIIIe siècle (1881, I, p. 181), Edmond e Jules de Goncourt mencionam a obra praticamente nos mesmos termos: “Pequeno quadro representando o retrato do filho do Sr. Godefroy, joalheiro, atento ao girar de um pião”.
Segundo as pesquisas de Leprieur, reportadas por Rosenberg, Auguste Gabriel, filho de Charles Godefroy, um banqueiro e joalheiro, morto em 1748, era dez anos mais jovem que seu irmão Charles, que se tornaria mais tarde um entusiasta mecenas e colecionador. Ainda menino de oito anos, ele é retratado por Jean Baptiste Massé, em um desenho à sanguínea de 1736, ao lado do irmão e do pai, na imponente biblioteca da família. Seu irmão Charles posara já por volta de 1735, para o que é considerado o “primeiro retrato verdadeiro de Chardin” (Conisbee 1985, p. 111).
Nascido em 1728, ele tornou-se écuyer e controlador-geral da Marinha. Grande amante da pintura, Auguste Gabriel comprou vários quadros da coleção de seu pai, além de duas importantes obras de Watteau, que hoje estão no Louvre (Rosenberg 1979, p. 11). Em 1745, a obra encontrava-se na coleção do célebre amateur Chevalier de la Roque, que promovera Watteau e para quem, provavelmente, Chardin pintou a obra em 1741, três anos após ter pintado a primeira versão do retrato de Auguste Gabriel para a família Godefroy, hoje conservada no Louvre. Há pequenas variantes entre as duas obras, como um enquadramento diferente do rolo de papel, que na primeira versão aparece integralmente na cena. Da análise de tais variantes pode-se inferir que a gravura feita por Lépicié em 1742 (Bocher, p. 52, n. 50 e reproduzida em Norman 1901, p. 125) usa como modelo a versão do Masp. Esta gravura é citada no Mercure de France, de novembro de 1742, p. 2506. Segundo Norman (1901, p. 49), uma “repetição” da obra encontrava-se outrora na coleção de um certo Dr. Boutin, em Paris, provavelmente a mesma citada por Rosenberg em 1979 (p. 9), o qual faz referência a três versões realizadas no século XVIII, além de duas cópias, uma apresentada na venda Marius Palme em 22 de novembro de 1923 e a outra no Ashmolean Museum de Oxford.
Como bem notam Rosenberg (1979, p. 240) e Camesasca (1987, p. 136), as duas obras, a do Masp e a do Louvre, contribuíram com destaque para a redescoberta de Chardin no final do século XIX. Em 1867, ambas aparecem em uma pequena exposição em Versalhes, sendo recebidas com entusiasmo pela crítica. Trinta anos depois, como menciona Camesasca, foram qualificadas como petits chefs-d’oeuvre por André Michel, por ocasião da exposição Portraits de femmes et d’enfants, em Paris, e enfim, em 1907, na famosa exposição promovida pela Galerie Georges Petit, elas ganham celebridade. Nesta ocasião, o Louvre adquire uma das versões, suscitando uma áspera polêmica, pois escolhe a versão anterior (provavelmente a de 1738), contudo com data lacunosa, considerada por alguns experts de menor excelência. Os desdobramentos de tal polêmica, tendente por vezes a depreciar a qualidade da versão paulista, são reportados minuciosamente por Camesasca. A memorável exposição Chardin de 1979-1980 no Grand Palais trazia ainda ecos da controvérsia de 1907, embora a plena autografia da versão do Masp tenha sido reconhecida sem nuances por Pierre Rosenberg. Ainda em 1985, Conisbee (p. 155) considerava contudo a obra apenas “provavelmente autógrafa”.
Para além da questão da autografia da versão paulista, obviamente indubitável, permanece a do significado deste retrato, que é simultaneamente também uma natureza-morta e uma cena de gênero. Dever-se-ia imaginar nesta cena – um menino entretido com o pião e esquecido de seus afazeres – uma ressonância emblemática ou alegórica de conteúdo menos evidente? Conisbee (1985, pp. 158-159) discute algumas hipóteses. O retrato poderia ter sido inspirado em um livro de símbolos espanhol de 1610, no qual a imagem de um pião, acompanhado pelo título “Somente em se batendo”, simboliza assim a preguiça humana que não é vencida senão pela pressão do chicote. A imagem reaparece em um livro de símbolos holandês, de 1614, em que a simbologia do pião, transferida para um contexto religioso, é formulada da seguinte maneira: “Mais distante está o chicote de suas costas, mais preguiçosamente elas servem a Deus”. O estudioso inglês, contudo, considera remotas tais associações, não apenas porque vagas e imprecisas, mas sobretudo porque se deve “permanecer prudente ao atribuir significações emblemáticas às pinturas de Chardin”. Por outro lado, se simbologia houver, deve-se buscá-la nos límpidos alexandrinos apostos à gravura de Lépicié:
Dans les mains du Caprice auquel il s’abandonne, L’Homme est un vrai Tôton qui tourne incessament; Et souvent son destin dépend du mouvement, Qu’en le faisant tourner la fortune lui donne.
Conisbee associa a iconografia em questão à da Bolha de Sabão, muito difundida na pintura francesa do Setecentos. Outra associação possível, e que nos parece impor-se mais imediatamente, é com as duas versões do Castelo de Cartas, pintadas por Chardin em 1737, hoje nas National Gallery de Londres e de Washington. Mas antes ainda de quaisquer conotações morais, à maneira de uma vanitas amenizada, a cena em questão parece indicar uma benevolente e bem-humorada reprimenda à criança que, hipnotizada pelo pião, descura de seus estudos literários e artísticos, esquecidos na gaveta e em um canto da mesa. Neste sentido, a iconografia de nossa obra seria uma divertida e irônica variante do tema da educação infantil, muito em voga no século XVIII e recorrente inclusive em Chardin.
— Autoria desconhecida, 1998