Depois de manter um ateliê em Leiden por cinco anos, Rembrandt mudou-se para Amsterdã, onde fez fama e fortuna pintando especialmente retratos para coleções particulares. O sucesso que alcançou como pintor foi tão grande que, em torno de 1633, comandava um dos maiores ateliês da Europa, em um palácio de quatro andares no centro de Amsterdã. Na década de 1640, uma série de infortúnios pessoais e profissionais levaram Rembrandt a uma decadência gradual. Ele então abandonou o acabamento e a correção de seu primeiro estilo para se dedicar a um estudo profundo da luz, que resultou em uma sublime intensidade emotiva das pinturas e das gravuras. O Retrato de jovem com corrente de ouro (Autorretrato com corrente de ouro) (circa 1635) é tradicionalmente apontado como um autorretrato, embora a crítica contemporânea tenda a contestar essa hipótese. Não obstante a opinião de especialistas de que a obra seja de autoria do “círculo” do mestre holandês, a atribuição a Rembrandt é antiga e amparada por diversos documentos, réplicas e registros gráficos que remontam ao século 17. A presença de uma assinatura visível apenas à luz infravermelha e de um pentimento (correção) à altura do peito podem reforçar a ideia de uma intervenção direta do pintor.
— Equipe curatorial MASP, 2017
Por Laura Cosendey
Sempre perco alguns minutos diante de um Rembrandt. Dá gosto ver cada pincelada, cores e texturas usadas para traduzir em pintura a sensação visual e tátil da pele. Porosidade, vincos da testa e linhas de expressão trabalhadas em velaturas. A luz que reflete na ponta do nariz e na maçã do rosto. Rembrandt produziu autorretratos ao longo de toda a vida, na obra do MASP o artista tinha cerca de 30 anos. É a idade que tenho atualmente, e me pego olhando com mais atenção para essas pequenas mudanças (por favor, não ria, é o processo natural de entendimento do corpo). Imagine como devia ser para o pintor se ver no espelho todos os dias, descobrir novas linhas sutis embaixo do olho, e as que se anunciam na testa, quase prevendo como serão as próximas. É como se Rembrandt mudasse o jeito de pintar conforme ele mesmo envelhecia. Nunca esqueço da primeira obra do artista que vi pessoalmente, Retrato de Margaretha de Geer (1661), National Gallery. Seus retratos não são da ordem do instante, de um disparo único, parecem sobrepor todo tempo que a pessoa passou posando, como se o rosto se mexesse sutilmente.
— Laura Cosendey, assistente curatorial, MASP, 2020
O formato inusual e a existência de cópias induzem a pensar que a obra Retrato de Jovem com Corrente de Ouro (Auto-Retrato com Corrente de Ouro) fosse originariamente retangular. Foi também aventada a hipótese de que tivesse dimensões ligeiramente maiores (RRe 1989, p. 635). À altura do “V” formado pela corrente de ouro, podem-se notar pentimenti importantes.
A obra possui, como se sabe, uma fortuna crítica contrastada. Desde ao menos 1829, a historiografia considera-a de Rembrandt, e não raro uma de suas obras-primas (em torno de 1635). Contudo, bem cedo, algumas vozes dissonantes manifestam-se, adensando-se aos poucos. Waagen (1857, p. 150) considera-a “too tame for him”. Gerson (1968, n. 188) não apenas observa que a atribuição a Rembrandt “is not wholly convincing”, mas contesta, a nosso ver acertadamente, que a obra seja um auto-retrato. Lecaldano (1969, n. 187) e Wright (1981) parecem receptivos às dúvidas de Gerson. Schwarz não inclui a obra em seu livro de 1984. Müller Hofstede (1957, p. 124), Sumovsky (1983), Tümpel (1986), e Benesch, enfim, avançam mais resolutamente o nome de Govaert Flinck (1615/1616-1660).
Para os estudiosos da comissão Rembrandt, a obra não é nem do ateliê, nem mesmo do círculo imediato do artista: “One cannot discount the possibility of the painting coming from Rembrandt’s circle, though it is unlikely that it was done by a direct pupil. To judge from its appearance, a date in the 17th century is however quite acceptable” (1989, p. 636). Neste contexto, a assinatura é considerada inequivocamente falsa: “The uncharacteristic and perfunctory script make it plainly unauthentic”. Tais conclusões distanciam excessivamente a obra do raio de ação de Rembrandt. Como se verá a seguir, parece haver elementos suficientes, não levados em conta na análise da comissão, para situar a obra do Masp ao menos no ateliê do mestre, por volta de 1635. Em carta a P. M. Bardi de 15 de agosto de 1985, Paul A. Hachey, curador assistente da Beaverbrook Art Gallery de Fredericton, Canadá, notifica a existência em seu museu de um retrato (óleo, 73 x 63 cm) do notável gravador e latinista inglês John Pine (1690?-1756), de c.1755, realizado por William Hogarth e inspirado na obra do Masp. Desta última, como já notado por Wright (1982, p. 42, n. 28), existem cópias: “A copy of the head was on the Amsterdam art market in the 1960s and several other versions have appeared, most of them very inferior”. A cópia em questão exibe algumas variantes nas vestes do retratado. Ela foi publicada pelo RRe (1989, p. 635), que ignora sua localização atual, assinalando por outro lado a existência das seguintes gravuras:
– uma mezzotinta de Pieter van Bleek (ativo em Haia e na Inglaterra entre 1723 e 1764), com a inscrição: “Rembrandt Van Ryn pinxit 1632 – eVB 1747 / Rembrandt Van Ryn (Charrington 32)”. A gravura reproduz a pintura invertidamente e em um formato oval;
– uma gravura assinada por um artista chamado Murray, com a inscrição: “Rembrandt pinxit – Murray sculpsit / Published by Harrison & Co. Aug. 1794”. A gravura reproduz a pintura invertidamente e em um formato oval;
– uma gravura de Johann Georg Hertel II (ativo em meados do século XVIII em Augsburgo).
Nas três gravuras, a figura está desprovida do colar. Além disso, os mesmos estudiosos remetem a um desenho oval (107 x 95 mm), vendido em Berlim no leilão Boerner-Graupe em 12 de maio de 1930, n. 41, com atribuição a Ferdinand Bol (Sumovski, Drawings, I, p. 99, n. 9), e acrescentam: “Possibly made after one of the prints” (acima indicados). Por esta frase entende-se que a comissão Rembrandt admite implicitamente que este desenho não seria de autoria de Ferdinand Bol (1616-1680), nem mesmo anterior a meados do século XVIII, já que nenhuma das três gravuras mencionadas é anterior a 1747. Se, ao contrário, o desenho for efetivamente de Ferdinand Bol, e há poucas razões para duvidar de uma atribuição de Sumovski, ter-se-á aqui, mais que um indício, uma demonstração segura de que a obra do Masp Retrato de Jovem com Corrente de Ouro (Auto-Retrato com Corrente de Ouro) nasce ao menos no ateliê de Rembrandt, pois é sabido que Bol o freqüenta apenas entre 1635 e 1637, isto é, exatamente nos mesmos anos em que se data comumente o óleo do Masp. A se confirmar a atribuição do desenho, confirmar-se-ia ipso facto a origem da obra do Masp, não apenas e na melhor das hipóteses, no “círculo” de Rembrandt, como proposto pela Comissão, mas diretamente em seu ateliê.
Um segundo argumento importante é a atribuição da obra por quatro estudiosos a Govaert Flinck, pois é igualmente sabido que, como Bol, também Flinck trabalha no ateliê de Rembrandt por volta de 1635, mimetizando então admiravelmente sua maneira, para depois distanciar-se muito do estilo do mestre. O prestígio de que gozou a obra do Masp no século XVIII, haja vista não apenas a existência dos registros gráficos aludidos, mas sobretudo a recepção da obra junto a um connaisseur do quilate de Hogarth, é um argumento suplementar não desprezível para confirmar uma origem da obra no ateliê do mestre.
Acrescente-se a isto a questão da assinatura, descartada pela comissão por razões apenas tipológicas. Para estabelecer que se trata entretanto de uma adjunção posterior ao estrato original da pintura, far-se-ia mister uma análise positiva, mais circunstanciada, resultante de um exame científico. Se vier a se verificar que a assinatura é coeva à obra, não se concluirá necessariamente que a pintura seja da mão mesma de Rembrandt, mas será ainda mais difícil negar sua origem em seu ateliê, vale dizer, sob sua direta supervisão e a partir de uma impostação original criada pelo próprio mestre, dadas as imprescindíveis seções de pose do cliente a ser retratado. Enfim, é extremamente inverossímil a tradicional hipótese de que se trate de um auto-retrato. Por mais que identificações de retratos possam deixar margem a dúvidas, basta comparar o retrato do Masp com os dois auto-retratos do Louvre e de Berlim, ambos de 1634-1635 e ambos fisionomicamente inequívocos, para perceber que entre a personagem retratada no quadro do Masp e os dois auto-retratos em questão existe pouco mais em comum que a faixa etária. Bauch, de resto, já o advertira desde 1966, preferindo o genérico título de Junger Mann in Reicher Tracht (Jovem em ricos trajes).
Rembrandt gravou por volta de trezentas águas-fortes, muitas enriquecidas com ponta-seca, a partir de desenhos preparatórios dos quais setenta aproximadamente ainda se conservam. A gravura São Jerônimo em Oração pertence ao primeiro dos três períodos em que habitualmente se classifica sua obra gráfica, período que termina nos anos 30 e que se caracteriza sobretudo pelo emprego do que Hind (1923, p. 172) chama “the pure etched line”. O desenho preparatório para esta água-forte fornecerá ao artista o ponto de partida para seu São Francisco em Oração, da Gallery of Fine Arts de Ohio, datada de 1637, do qual se conhecem diferentes cópias. Coppier (1929, p. 101, F. 17) publica o B101, notando seu formato arcado. O autor inclui-o entre as águas-fortes originais do artista, advertindo aí, contudo, um “trabalho de discípulo, em grande parte”.
— Autoria desconhecida, 1998