Construções afro‐atlânticas reúne 90 obras do pintor, escultor e gravador Rubem Valentim (1922‐1991), figura fundamental da arte brasileira e das histórias afro‐atlânticas no século 20. A partir dos anos 1950, Valentim se apropria da linguagem da abstração geométrica para construir complexas composições que redesenham e reconfiguram símbolos, emblemas e referências afro‐atlânticos. Nesse processo, ele transforma linguagens artísticas de origem europeia que dominaram boa parte da produção de arte no Brasil e no mundo, nos anos 1950 e 1960 (a abstração geométrica, o construtivismo, o concretismo), submetendo‐as a referências africanas, sobretudo através dos desenhos e diagramas que representam os orixás das religiões afro‐brasileiras—como o machado duplo de Xangô, a flecha de Oxóssi e as hastes de Ossaim.
Apesar de sua importância, Valentim ainda não obteve o devido reconhecimento, e essa exposição e o catálogo que a acompanha buscam reposicionar o artista na história da arte brasileira e internacional. O enfoque busca uma abordagem mais ampla de sua obra, sublinhando seus aspectos políticos, religiosos e sobretudo afro‐brasileiros, para além das abstrações, construtivismos e geometrias.
O período coberto pela mostra vai desde 1955, quando, ainda em Salvador, Valentim assumiu decididamente suas referências do candomblé e da cultura afro‐brasileira, até 1978, seu período mais fértil. A exposição atravessa cronologicamente as diferentes fases e locais onde o artista trabalhou: Bahia (1949‐1956), Rio de Janeiro (1957‐1963), Roma (1964‐1966) e Brasília (1967‐1978). O conjunto inclui agrupamentos fundamentais, como a série Emblemas logotipos poéticos da cultura afro‐brasileira, exposta na Bienal Nacional, em São Paulo,1976, e os Relevos emblemas de 1977‐1978.
Em seu Manifesto Antropofágico, de 1928, um texto primordial do modernismo brasileiro, Oswald de Andrade (1890‐1954) propunha de forma poética um verdadeiro programa para o intelectual e o artista nativo: o de deglutir o legado cultural europeu para digeri‐lo e construir, de maneira antropofágica, uma obra própria, híbrida, brasileira, mesclando referências indígenas, africanas e europeias. Valentim é um dos artistas que, de maneira mais completa e ambiciosa, levou a cabo o projeto antropofágico. Nesse processo, ele realizou uma das mais radicais operações na história da arte brasileira, submetendo um idioma europeu a uma linguagem afro‐brasileira, numa contribuição efetivamente singular e potente, descolonizadora e antropofágica.
CURADORIA Fernando Oliva, curador, MASP.