Lygia Clark é uma das artistas brasileiras mais influentes do século 20. Seus Bichos, feitos nos anos 1960, representam uma ruptura profunda com a escultura moderna, questionando o distanciamento do trabalho de arte da própria vida e a pureza intocável e inatingível da obra. O espectador é convidado a tocar e alterar a configuração dos Bichos, apagando as distinções tradicionais entre autor/criador e espectador/consumidor de arte. Ao manipular a obra, o espectador assume um papel ativo e criativo, e não mais meramente passivo de observador. Apesar de suas feições de máquina sugeridas pelos materiais industriais (dobradiças e folhas de alumínio) e de sua aparência geométrica e abstrata, a referência à natureza está inscrita no próprio título da obra — Bicho. Em português, “bicho”, diferentemente de “animal”, tem um tom familiar, doméstico — bicho é também aquele que não reconhecemos, de quem não sabemos o nome. O que o espectador segura em suas mãos e manipula é, portanto, carregado de referências animalescas desconhecidas. Hoje, os Bichos de Clark são objetos raros e delicados, e, por motivos de conservação, não é mais possível expor o trabalho e permitir ao público que os toque como em outros tempos. As esculturas são expostas em vitrines e, sempre que possível, acompanhadas de réplicas autorizadas pela família da artista, feitas especialmente para serem manuseadas em exposições. O MASP tem buscado fazer uma réplica para expô‑la ao lado do original, permitindo que o público interaja com o trabalho, como era desejo da artista.
— Guilherme Giufrida, assistente curatorial, MASP, 2018
Por Guilherme Giufrida
A maioria das obras de arte já vive em isolamento social, protegidas por faixas de segurança, vidros temperados, molduras e pedestais. Em Acervo em transformação: Comodato MASP B3, mostra que curei com Adriani Pedrosa e Olivia Ardui de um conjunto de obras que o museu recebia em empréstimo por 30 anos da B3 — Brasil, Bolsa, Balcão, tivemos a oportunidade de manipular um Bicho de Lygia Clark (1920-1988), uma das obras mais radicais da história da escultura. Clark participou da fundação do Grupo Neoconcreto na década de 1950, e partir dos anos 1960 foi trocando gradualmente sua pintura de composições abstratas e geométricas pela experiência relacional com esculturas. Bicho é o nome dado à uma série de trabalhos realizados entre 1960 e 1966 constituídos por placas de alumínio polido unidas por dobradiças que possibilitam e convidam à articulação e manipulação do público. Ao serem manipulados, esses materiais industriais ganham vida, identificando-se com membros de animais. Os processos de desfazer e refazer a escultura tornam-se o próprio objeto de Clark, que desejava desmistificar a arte e o artista, desalienando-os e os aproximando do observador. Manuseando o Bicho, percebi a dificuldade de se repetir determinada configuração, dada a multiplicidade de suas posições potenciais. A forma é efêmera, o que fica é o ato, o gesto e o movimento. Por outro lado, não me senti totalmente livre, pois a escultura reagia segundo suas próprias restrições, revelando os limites da invenção e participação dos sujeitos. Espectador e escultura estão um sob o controle do outro, mantendo na experiência uma relação tensa. Esse trabalho, concebido há mais de meio século, ainda impõe desafios ao estimular o toque físico como forma de conhecimento e o corpo como potência e perigo através da arte, problemas que hoje mais do que nunca se extravasam para fora do museu.
— Guilherme Giufrida, curador assistente, MASP, 2020