Pioneira na experimentação de linguagens na arte, Anna Bella Geiger em Brasil nativo/ Brasil alienígena se apropria de nove fotografias jornalísticas e antropológicas de indígenas brasileiros impressas em postais. De modo irônico e intencionalmente falseado, a artista reproduz estas cenas e organiza-as em pares contrapostos, apresentados em cartelas de plástico, como souvenirs para turistas vendidos em bancas de jornal. Nessa provocação, Geiger desestabiliza estereótipos ligados à ideia do brasileiro e, ainda, à própria definição da arte, aqui conduzida como apropriação, performance e conceito — afastada do artesanal. Ao inscrever imagens do "nativo" na arte e ironizar a cultura urbana "alienígena" (de que a própria artista faz parte), desafia-se os próprios princípios da cultura de massa, cujas imagens desvalorizam a diferença. Em contraposição ao enquadramento de indígenas diante de uma oca, a artista posa com mulheres de sua família e agregadas, em sua varanda, com as construções de um bairro carioca ao fundo. Geiger repete em cada postal gestos das culturas originárias, mas em trajes urbanos, misturados com cocares, arcos e flechas. Indiretamente, porém, a artista menciona algo que as imagens não revelam, como ao portar uma sacola do supermercado Mar e Terra, palavras-chave na história colonial, que tocam, ainda, na dilacerante disputa territorial no Brasil. Se uma índia sorri diante do espelho, a artista contempla seu reflexo num lago de jardim, como Narciso, incapaz de amar o diverso — capturado pela própria imagem refletida na água. O jogo de semelhanças e diferenças, ainda que caricato, nos ilude brevemente. O mesmo acontece quando acreditamos que postais revelam o âmago da cultura tribal amazônica. Nestes registros talvez vejamos, porém, apenas o reflexo de nossa própria face.
— Luiza Interlenghi, professora do Departamento de Artes, PUC-RJ, 2020
Por Matheus de Andrade
Em Brasil nativo/Brasil alienígena, Anna Bella Geiger se apropriou de cartões-postais da antiga revista Manchete que representam os Bororo (povo indígena que ocupa a região de Mato Grosso) e propôs releituras para cada imagem, criando nove pares de cartões-postais, expostos lado a lado: à esquerda, a imagem original, o Brasil nativo; à direita, o simulacro, o Brasil alienígena. As imagens da Manchete revelam-se bastante perversas levando-se em conta o contexto do Brasil nos anos 1970, em que as comunidades indígenas sofreram com a violência das políticas de Estado da ditadura civil-militar — situação oposta à imagem idealizada e exotizada desses postais. Já as novas fotografias foram feitas na varanda do apartamento da artista, no bairro do Flamengo no Rio de Janeiro, com a colaboração de amigos e parentes na composição das cenas. Geiger fricciona essas imagens e mundos para abordar o traumático processo da colonização do Brasil, iniciado pela invasão portuguesa (alienígena) no atual território brasileiro, antes ocupado apenas pelos povos nativos. Geiger coloca a si mesma (artista atuante no período da ditadura, mulher, mãe e descendente de imigrantes) nessa complexa equação para discutir esses termos não apenas no campo político e histórico, mas também na esfera pessoal e íntima, como aponta a frase escrita no trabalho: “... com o meu despreparo como homem primitivo”. Posteriormente a obra se desdobrou na ampliação de duas dessas imagens, que trazem em si um elemento em comum, mas operados em contextos completamente diferentes: o arco e flecha segurado pelo indígena em meio à floresta, e o mesmo artigo sendo empunhado pela artista no espaço restrito da cidade – esterilizando a sua utilidade de caça e defesa e apontando para a idealização deste elemento nas representações de indígenas no Brasil.
—Matheus de Andrade, assistente de pesquisa, MASP, 2023