Na juventude, Di Cavalcanti frequentou ateliês e se tornou ilustrador e editor de arte em periódicos como a revista Panóplia (1918). Foi um dos principais idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, marco inaugural do modernismo no Brasil. Em 1923, mudou‑se para Paris e lá conheceu os cubistas Fernand Léger (1881‑1955) e Georges Braque (1882‑1963), deixando‑se influenciar pelo desenho estilizado e a construção geométrica das cenas. De volta ao Brasil, e filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCB), foi um dos principais agitadores do debate artístico e intelectual de São Paulo, em especial por sua atuação no Clube dos Artistas Modernos (CAM), que ajudou a fundar em 1932. Ele defendia o sentido político e histórico da figuração, que via como ferramenta para representar temas e personagens brasileiros. Cinco moças de Guaratinguetá é uma de suas obras mais importantes. As cinco figuras aprumadas, com tons de pele e vestidos de diferentes cores, ocupam todos os planos da pintura, cada qual com seu caráter. As áreas de cor em cada corpo e no cenário são bastante marcadas, com gradações que dão volume e profundidade. Anônimas, as moças interioranas demonstram como o imaginário popular ocupava um lugar central na arte brasileira durante o modernismo.
— Equipe curatorial MASP, 2015
Por Guilherme Giufrida
Como antropólogo e curador, me interesso muito pela vida dos objetos. É fascinante ver as imagens da chegada das primeiras obras ao MASP no início da formação do acervo — a descida do avião, a recepção no porto, a foto estampada nos jornais, como celebridades. Meu primeiro trabalho na curadoria do museu foi na mostra Da bolsa ao museu, Comodato MASP B3, por ocasião do empréstimo por 30 anos de 65 obras pertencente às Bolsas de Valores, reunidas na B3. Várias pinturas de alguns ícones da arte brasileira do século 20, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Pancetti e Guignard, vieram aprofundar e complementar a coleção brasileira do museu, que historicamente havia privilegiado a aquisição de arte europeia. Numa das primeiras visitas, a equipe do museu fez fotos das salas de reunião da Bolsa no centro de São Paulo, ainda com as obras nas paredes, mostrando onde cada uma era exposta e de que forma testemunharam por décadas muitas das principais decisões financeiras do país. Hoje, as pinturas são apresentadas nos cavaletes de vidro no MASP, para um público muito mais amplo. Ao vê-las ali, junto a outras centenas de obras do museu, especulo sobre as outras paredes (ou suportes) por onde passaram, que cenas e eventos presenciaram silenciosas, até finalmente chegarem ao MASP.
— Guilherme Giufrida, curador assistente, MASP, 2020
Por José Augusto Ribeiro
Na historiografia brasileira de arte, é comum a avaliação de que a produção “significativa” de Di Cavalcanti situa-se entre 1920 e 1940. Esse é, de fato, um período regular de sua trajetória, marcada, do início ao fim, por oscilações mais e menos acentuadas de qualidade. A produção do artista nesse momento se caracteriza, também, pelo desembaraço de sua figuração e das soluções técnicas – na distorção e simplificação dos elementos, no humor e na primazia das cenas mundanas, nas experimentações de seu trabalho gráfico e na liberdade de ocupação do espaço pictórico, sem respeitar necessariamente escala e profundidade na organização de seres e espaços. Tais qualidades perdem tornam-se mais raras, em seguida, com o alinhamento da obra a aspectos do muralismo mexicano e à chamada “temática social” – ainda que a representação de trabalhadores por Di Cavalcanti não caia em conteúdos edificantes. De qualquer modo, durante bastante tempo as imagens do artista permaneceram atreladas ao que ele entendia por “realismo”. O ponto de vista adotado por Di Cavalcanti para o desenvolvimento de sua obra situava-se na área urbana de um país em processo de modernização. O artista desenvolve, nessa situação, um trabalho pedestre, com atenção nas clivagens de uma sociedade desigual e injusta. Concentrado nos acontecimentos das ruas de São Paulo e Rio de Janeiro, sobretudo, ambas com planos de urbanização em andamento, Di centrava foco não em traços de progresso e avanço econômico, mas na diversidade da população e, principalmente, no dia a dia humilde. Dentro dessas cidades, interessava-lhe a movimentação nas áreas públicas, nos pedaços onde residiam, trabalhavam e se divertiam os extratos baixos da sociedade, os estabelecimentos comerciais de lazer, sociabilidade e atrações noturnas. Eram as praças, os bares, o baixo meretrício, os antros, os ambientes frequentados por poetas, músicos, artistas, os pontos de encontros de cafetões, travestis, ladrões, bicheiros, as áreas ocupadas por trabalhadores e jovens. Ambientes, de maneira geral, moralmente condenados por uma sociedade que acreditava civilizar-se, a caminho do progresso cultural e social. Em 1926, um ano depois de voltar ao Brasil de sua primeira viagem a Paris, Di Cavalcanti realiza pinturas com uma paleta repleta de tons de azul, rosa, verde, amarelo e, nesse sentido, aparentada com a de Tarsila do Amaral no período conhecido como Pau-Brasil, entre 1924 e 1928. A luminosidade que a pintura de Di Cavalcanti conquista nesse momento diverge das cores escuras e da atmosfera de mistério que marca a sua produção pictórica anterior. A solidez dos corpos nos trabalhos do artista a partir de meados da década de 1920 contrasta, também, com os limites incertos de seres e objetos em suas pinturas anteriores, com a aparente dissolução dos corpos em penumbras. Há outras semelhanças entre Di e a Tarsila nesse período, como a recorrência às hachuras e ao dégradé para estabelecer a volumetria das figuras e a decomposição geometrizada da representação à maneira de Fernand Léger. Em seu livro de memórias sobre o começo de sua trajetória, Di fala do “efeito” da viagem à França: “Paris pôs uma marca na minha inteligência. Foi como criar em mim uma nova natureza e o meu amor à Europa transformou meu amor à vida em amor a tudo que é civilizado. E como civilizado comecei a conhecer minha terra”. Em Paris, Di frequentara o ateliê de Tarsila do Amaral. E essa declaração dele a respeito da volta ao Brasil vai de encontro a uma fala de Tarsila, também sobre seu retorno depois de uma viagem à Europa. Da Itália, a artista escreve em carta para a família: “... tenciono passar muito tempo na fazenda [no interior de São Paulo] assim que chegar e espero na volta para cá [à Europa] trazer muito assunto brasileiro”. Mas Di Cavalcanti, da França, já exprimia desencanto com as vanguardas europeias, passando a considera-las “modas” passageiras – ainda mais se comparadas a valores que o artista considerava “eternos” da tradição pictórica –, em artigo escrito para um jornal brasileiro. Em narrativa posterior, o artista conta que, “em Paris, sentia cada vez mais afastar-se de uma concepção de ‘arte pela arte’”. A produção que Di desenvolve a partir daí – quando, em suas palavras, “comecei a conhecer minha terra” – compõe em grande medida o que se entende ainda hoje por moderno, nacional e popular no Brasil. Algumas das pinturas mais consideradas da obra de Di Cavalcanti, pela crítica de arte mas também pela história cultural brasileira, foram realizadas entre 1926 e 1930. Uma parte dessa produção evoca ambientes de roda de samba. Outra parte reúne cenas ambientadas no Rio de Janeiro ou em uma cidade do interior de São Paulo, com mulheres em situações de lazer ou descanso, entre estados de prazer e melancolia, deitadas ou à janela de uma casa, sempre posando. Desse segundo grupo faz parte a obra As cinco moças de Guaratinguetá (1930), do acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP). A pintura tem uma atmosfera de humildade, de vida simples, que se manifesta na brandura geral do quadro, ou em detalhes como a área do muro, à direita das mulheres, com tijolos aparentes, sem o reboco de acabamento, quebrada ou desgastada pelo tempo. Há também, nesse quadro, os contrastes cromáticos que caracterizam a produção do artista naquele tempo, com o desenho delimitando as áreas de cor, em que as passagens tonais nos limites do corpo de seus motivos dão volume às figuras. A representação de grupos de pessoas até o preenchimento da superfície é outra característica de Cinco moças... que se estende a uma parte significativa da obra de Di Cavalcanti. Na pintura de 1930, como em diversas outras do artista, o ponto de vista para a representação de “tipos sociais” é bastante próximo dos personagens. O recurso aqui confere lirismo à cena, na expressão de um sentimento amoroso do pintor em relação às modelos, ao mesmo tempo em que favorece a empatia do observador com as figuras. Afinal as cinco mulheres se agrupam para posar para um “retrato”, para o artista, em última instância. Até a moça de vestido rosa, que parece atravessar o enquadramento com guarda-sol aberto, na verdade “posiciona-se” estrategicamente à esquerda da composição – já que ela não caminha, não cruza o espaço, mas mantém as pernas paralelas. O mesmo ocorre com a moça aparentemente à toa na janela, embora ela dirija seu olhar para o observador. As personagens, a propósito, não estabelecem contato visual umas com as outras, cada uma mira um ponto diferente. Já o desenho feito por Di Cavalcanti conecta os cinco corpos, traça a passagem de um para o outro pela justaposição de volumes com linhas retas e curvas, na alternância das cores de pele e das roupas. Por consequência, os olhos do observador tendem a deslizar de um elemento a outro, de maneira quase dispersiva. Porque os “acontecimentos” visuais são muitos, espalhados pela atenção especial do pintor ao desenho dos figurinos, aos chapéus cloche, aos vestidos longos e de tecidos estampados, aos detalhes da arquitetura. O resultado é uma imagem singela mas dinâmica, brejeira mas austera. O contexto de sua produção reporta às vésperas ou ao início do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), em que uma identidade brasileira, ou de um Brasil moderno e popular, se fixaria no samba, na figura do mestiço, no carnaval, na feijoada, no futebol, na “democracia racial” etc. A obra de Di Cavalcanti está à toda, portanto, quando alguns de seus principais "motivos" passam por uma virada de significação ideológica: quando determinados grupos sociais e certas manifestações culturais deixam de ocupar apenas uma condição de marginalidade para serem alçadas, também, à de símbolos nacionais.
— José Augusto Ribeiro, curador, Pinacoteca de São Paulo, 2017