Madame Cézanne, Hortense Fiquet (1850-1922), foi retratada por Paul Cézanne (1839-1906) em 29 pinturas e cerca de 50 desenhos entre 1872 e 1892. Ele a conheceu quando estudava em Paris. Fugiram para L’Estaque em razão do pai do artista, um banqueiro de Aix-en-Provence, reprovar o relacionamento entre os dois. Tiveram um filho e se casaram dez anos mais tarde. Pouco depois, já não viviam juntos, mas Cézanne continuou retratando-a. Afetivamente distantes, as pinturas seguem um mesmo modelo, tal como os estudos de paisagem do Monte Sainte-Victoire ou as maçãs de suas naturezas-mortas. Ela está sempre em posição frontal, o cabelo repartido ao meio, frequentemente sentada. À diferença dos impressionistas, que reproduziam a mesma cena para captar variações na luz, Cézanne insistia em temas para retrabalhar uma estrutura: a figura segue um esquema de formas elípticas–a cabeça, o tronco (com os braços em postura oval e mãos entrelaçadas), o vestido. Esses três eixos orientam-se por uma vertical sutilmente inclinada. Em 2014, uma exposição no Metropolitan Museum of Art - MET reuniu 24 das pinturas de Madame Cézanne. As mais complexas e representativas são as quatro em que ela aparece num vestido vermelho, provavelmente feitas em seu apartamento em Paris, no nº 15 do quai d’Anjou, na Île de Saint Louis, e reunidos na parede de abertura da mostra. A pintura do MASP é a mais sintética e singular, em razão da ausência de elementos na cena que perturbem a figura; o fundo azul-esverdeado contrasta com o vermelho do vestido que é pintado como se fosse uma intrincada escultura monocromática. Entretanto, o rosto é o mais expressivo, o olhar entre triste e cansado fitando algo posicionado à esquerda do pintor.
— Laura Cosendey, assistente curatorial, MASP, 2020
Por Patricia Mourão
Marie-Hortense Fiquet era mais comumente conhecida por seu nome de casada, Mme. Cézanne, sem prenome, apenas esposa de Paul Cézanne. Posou, ao longo de vinte anos, para 29 retratos de seu marido, além de aquarelas e desenhos. Em quase todos, está sentada, em interiores, roupas sóbrias, pouca pele à mostra, mãos ao colo e cabelos partidos ao meio e presos atrás. Tamanho recato e senso de distância destoam da graciosidade e espontaneidade feminina nas cenas de piqueniques ou passeios de barco comuns entre os impressionistas. Esse estranhamento, alinhado ao fato de que Cézanne escondeu-a da família por anos, temeroso de perder a mesada paterna, contribuiu para tingir de cores misóginas a recepção dessas pinturas e da mulher retratada. Nas biografias do pintor, Marie-Hortense é retratada como anti-musa, mulher pouco sofisticada, de cara amarga e inexpressiva, menos interessante que uma maçã de Cézanne. Toma-se a pouca sensualidade e certa androginia desses retratos como uma evidência da incapacidade da modelo para inspirar o pintor, menosprezando a paciência e entrega necessária à dinâmica de Cézanne, que pintava lentamente, ponderando cada pincelada. Há outros três retratos em que Marie-Hortense porta o mesmo vestido vermelho, como neste do acervo do MASP. Com ar cândido, talvez monástico, Marie-Hortense parece flutuar contra um fundo ocioso azul-esverdeado, o qual contrasta com o vermelho do vestido em um jogo cromático que se reproduz em escala no restante da tela: no rosto, nos cabelos e então nas mãos, onde, em apenas duas pinceladas — uma verde, outra vermelha, fazendo a vez das veias e pele — repousa toda a energia da pintura.
— Patricia Mourão, doutora em cinema, USP, 2021
Por Dita Amory
As quatro pinturas de Madame Cézanne com um vestido vermelho (Fondation Beyeler de Basel, Art Institute of Chicago, Museu de Arte de São Paulo, The Metropolitan Museum of Art, Nova York) proporcionam uma visão especial sobre o processo do artista, já que são uma sequência de obras intimamente ligadas, produzidas em um período de tempo limitado. Essas pinturas parecem ter sido significativas para Cézanne — ” Só eu sei como pintar um vermelho” — e prenunciam subsequentes retratos cuidadosamente posados de outros modelos. As pinturas em vermelho dividem-se em dois pares: nas telas de Basel e Chicago, Hortense está virada para a direita, e nas telas de São Paulo e do Metropolitan sua pose é mais frontal. Não há consenso a respeito da ordem em que essas obras foram pintadas, embora a maioria dos estudiosos concordem que a pintura do Metropolitan (a maior que Cézanne pintou de sua esposa) tenha sido a última. Avaliações técnicas e uma compreensão do método de trabalho de Cézanne sugerem que uma obra levou à outra, à medida que aumentava seu interesse pelo tema, começando com o retrato de Basel, seguido pelos de Chicago, São Paulo e Nova York.
O quadro de Basel parece ter sido pintado rápida e diretamente; essa instantaneidade contribui para a natureza vulnerável dessa imagem de Hortense. Há um uso irrestrito da técnica de pintura direta ou alla prima no rosto; boa parte do esboço é visível, assim como as áreas brancas da tela também, no rosto, nas mãos, no vestido, na cadeira e no fundo. Uma avaliação mais acurada revela que foram adicionados detalhes após a secagem da tinta, como o ponto mais luminoso que ofusca a estampa na cadeira; a linha marrom-acinzentada à direita do braço esquerdo de Hortense — um contorno flutuante que também serve para interromper a intersecção entre figura e fundo — e a faixa preta sobre o lambril, que é mais larga e alta do lado esquerdo da cadeira do que do direito e contém rachaduras de secagem, indicando que o artista fez algumas correções enquanto pintava. Contudo, esses aprimoramentos não afetam substancialmente a representação original e acessível de Hortense.
Na pintura de Chicago — do mesmo tamanho da versão de Basel —, Cézanne transformou essencialmente a mesma pose e composição em algo muito diferente.5 Ele fez mudanças desde o início: a posição de Hortense na cadeira é menos assertiva, os bolsos do vestido ganharam mais proeminência, e primordialmente seu olhar não se dirige ao observador, mas sim para fora da moldura da pintura. Imagens de infravermelho e raios X da tela revelam que o esboço e a pintura inicial tinham elementos em comum com o retrato de Basel: o traçado do contorno direito do rosto era mais vertical, e nas primeiras camadas de tinta os olhos e a boca eram maiores, o ombro esquerdo mais anguloso, e a lateral da cadeira — que é visível na imagem de Basel — mais evidente. Aqui, Cézanne também fez ajustes na faixa preta sobre o lambril, que começava mais estreita na direita e foi alargada durante a pintura. Conforme Cézanne trabalhou na tela de Chicago, a imagem naturalista de Hortense vista nas primeiras camadas foi sutilmente alterada: os olhos foram estreitados pela pintura das pálpebras; pinceladas de tinta clara foram acrescentadas sobre o lábio superior e o lado direito da boca e boa parte da lateral da cadeira foi escurecida. As formas mais planas e geométricas da cabeça, do corpo e da cadeira resultaram em uma pintura estilizada e contida (e também mais ambígua e universal), na mesma medida em que a versão de Basel é natural e extrovertida.
A Madame Cézanne em vermelho de São Paulo é um retrato franco, até informal — uma representação cândida e tocante de Hortense —, executado de uma maneira mais esboçada do que o artista costumava fazer, com menos correções e acabamentos. Hortense é retratada contra uma parede nua, e nessa pose mais frontal os bolsos abertos do vestido ganham mais peso, ancorando a figura no lugar da cadeira. Os bolsos abertos eram provavelmente um aspecto característico da aparência de Hortense; um bolso escancarado também está presente no retrato de Detroit. Uma pessoa próxima do casal relatou que Hortense erguia o vestido ao sentar-se, o que talvez provocasse a abertura dos bolsos para os lados.6 Em todo caso, Cézanne foi claramente envolvido pelo aspecto escultural de suas vestimentas. A maneira de pintar, combinada à proximidade da pose e à escala da figura (ainda que em menor formato), sugere que a versão de São Paulo foi um estudo preliminar para a figura de Hortense na pintura do Metropolitan.
As ambições do artista para Madame Cézanne em vermelho do Metropolitan estão implícitas em suas dimensões sem precedentes e em sua elaborada composição. É uma pintura de enorme complexidade espacial, e o fato de que foi pintada audaciosamente e com mínimas correções indica que as outras três pinturas em vermelho precederam e prenunciaram essa profunda expressão de seu tema. Aqui, a inquietante representação de Hortense vista em muitos dos retratos que Cézanne fez de sua esposa é intensificada, impregnando a composição.
O desequilíbrio pronunciado de sua figura e sua pose instável são amplificados pelo ângulo deslocado do lambril e da faixa preta de ambos os lados da cadeira. A composição é ainda mais desestabilizada pela inclinação do lado direito do espelho sobre a lareira, uma correção calculada de sua posição perpendicular inicial, claramente explicitada no reflectograma infravermelho. A única outra mudança significativa feita durante a pintura foi a correção do topo do bolso aberto do vestido, à direita, que começava alguns centímetros acima de sua posição atual e foi subsequentemente elevado, e então, quando a tinta havia secado, foi trazido à sua posição definitiva, mais baixa e menos simétrica. A despeito de toda a atenção dada à parte de cima do bolso, sua base não foi finalizada. A justaposição de trechos com diferentes estados de “concretização” é manipulada com grande segurança nesta obra, de áreas não pintadas às pontuações finais com tinta opaca vermelha, algumas tão pequenas que são quase invisíveis a olho nu. As mãos e o colo, em particular, demonstram brilhantemente a série de momentos capturados que compreendem a técnica de Cézanne. A expressão de Hortense é de tão difícil leitura quanto o espaço ao seu redor. O lado claro de seu rosto, com seu aspecto calmo e doce, tem pouco em comum com a sua inquisidora contrapartida, dramaticamente sombreada, mas ambos foram trabalhados com a mesma objetividade, envolvendo vasta técnica direta (alla prima). Hortense absorve e reflete o mundo inconstante mas monumental desta pintura extraordinária: modelo e processo em perfeita (e dissonante) harmonia.
No polegar esquerdo de Hortense há uma pincelada curva de impasto de uma camada inferior que estava seca quando Cézanne finalizou a pintura. Esse pequeno detalhe sugere que numa pose anterior ela estava segurando uma flor — uma das flores de papel que Cézanne usava em suas naturezas-mortas, ou talvez um botão recém-aberto — sob um ângulo diferente, um vestígio tocante de múltiplas poses e da passagem do tempo. Quaisquer que fossem as complexidades da relação do casal, as pinturas que Cézanne fez de Hortense são resultado de uma longa colaboração entre o artista e sua esposa, que lhe rendeu alguns de seus mais inovadores e poderosos retratos. Sua influência direta é observada nas obras de artistas que vão de Juan Gris, Pablo Picasso, Henri Matisse e Alberto Giacometti a Roy Lichtenstein e Elizabeth Murray. A maior conquista do trabalho de Cézanne foi notada pelo pintor Emile Bernard que, em 1891, à época com vinte e dois anos, logo após as pinturas em vermelho serem feitas e no mesmo ano que foi pintada Madame Cézanne no Conservatório, escreveu que Cézanne “abre à arte esta inesperada porta: a pintura por ela mesma”.
— Dita Amory, curadora, Metropolitan Museum of Art, Nova York, 2016
Por Luciano Migliaccio
Hortense Fiquet, talvez modelo profissional, encontrou Cézanne em Paris no fim da década de 1860 e em 1872 nasceu Paul. Casaram-se catorze anos após o nascimento do filho, em 28 de abril de 1886. A esposa foi retratada por Cézanne em vários quadros da década de 1890: Madame Cézanne na Varanda (c.1890, Nova York, Metropolitan Museum), três versões de Madame Cézanne na Cadeira Amarela, uma no Chicago Art Institute (c.1890) e duas em coleções particulares, ambas datadas entre 1890 e 1894. Em relação aos demais, Madame Cézanne parece estar no retrato Madame Cézanne em Vermelho, segundo Venturi (1936, p. 189), mais tranqüila, mais satisfeita, mais singela. As flores nas mãos conferem-lhe um ar mais simpático. Camesasca (1989, p. 112) nota que o pintor busca uma análise formal livre de interferências psicológicas. Para Valsecchi, “a pose singela, a luz límpida como um cristal, que acentua a soberba realização plástica da figura, ressaltada pela lenta difusão do ritmo oval, são tão agradáveis quanto maciças, como nas figuras do jovem Giotto”. As figuras de Cézanne são freqüentemente comparadas às de Piero della Francesca pela monumentalidade e aparente falta de expressão. Elas são, de fato, marcadas por uma expressão que corresponde mais a seu temperamento, que à representação de um momento da vida interior. Cézanne suspende-as numa atmosfera pensativa. Valabrègue afirmou que os retratos do jovem Cézanne pareciam mostrar uma vingança por alguma maldade que o modelo houvesse feito contra ele. A partir de 1875, a agressividade dá lugar a uma busca da essência interior dos retratados; tal atitude acentua-se após a dispersão dos impressionistas em 1878. Nos retratos da mulher realizados nos anos de 1890-1894, essa pesquisa torna-se mais radical, ao isolar progressivamente o modelo do contexto exterior, com o desaparecimento do espaço cúbico da perspectiva tradicional (Ponente). O quadro do Masp pode ser considerado uma reformulação sintética do retrato de Madame Cézanne na Cadeira Amarela (Venturi, n. 570). O fundo abstrato assume um valor importante e tende a colocar-se no mesmo plano da figura, adquirindo a mesma densidade. Cézanne busca um balanço de tensões plásticas, embora precário, e não a justaposição de planos organizados da superfície (Clay). Esse balanço reflete suas dúvidas e a série de tentativas em que consiste o processo de criação para o artista (Schapiro), evidenciando na obra uma dimensão temporal, o “arrepio da duração”, como o descrevia o próprio Cézanne.
— Luciano Migliaccio, 1998