François Clouet começou a pintar com o pai, o pintor flamengo Jean Clouet (1480-1541), a quem sucedeu como pintor de corte. Manteve‑ se nesse cargo durante quatro reinados da dinastia Valois na França, alcançando grande renome pelos retratos e realizando pinturas históricas e mitológicas inspiradas nas criações dos artistas maneiristas italianos. A obra do MASP possui três outras versões, todas atualmente na França. O banho de Diana remete ao mito narrado na Teogonia, do poeta grego Hesíodo (circa 750-650 a.C.), e nas Metamorfoses de Ovídio (43 a.C.–18 d.C.).
No mito, Acteão é caçado pelos seus próprios cães, depois de ser transformado em cervo por Diana, deusa da lua e da natureza, enfurecida ao ser surpreendida nua em seu banho com as ninfas. No entanto, a presença de dois sátiros na cena contraria essa interpretação, sugerindo uma outra, à luz dos eventos da época: acredita‑se que ela insinue a morte do rei Henrique II (1519-1559) (representado pelo cervo sendo comido no canto direito) e sua sucessão por Francisco II (1544-1560) (o cavaleiro que chega à esquerda). Assim, a Diana vestida de vermelho seria a nova rainha, Maria Stuart (1542-1587), que substitui a mulher sentada, a rainha Catarina de Médici (1519-1589), com expressão de pesar. A terceira figura feminina poderia ser Diana de Poitiers (1500-1566), favorita do rei Henrique II.
— Equipe curatorial MASP, 2017
O grupo feminino de O Banho de Diana lembra a iconografia de O Julgamento de Páris (Sterling 1955), sendo a pose de Diana semelhante à de um famoso modelo antigo, a da Vênus pudica (Béguin 1965). A composição, que retoma uma gravura de Rafael, põe em contraste a lívida elegância dos nus femininos da Escola de Fontainebleau com fortes reminiscências dos padrões cromático-decorativos das tapeçarias franco-amengas do século XV. O culto da pele nívea como traço distintivo da nobreza feminina é documentado em um poema de Brantône, coetâneo e provável amigo de Clouet, para quem, em um crayon do artista, a “neve do rosto” de Maria Stuart “apagava o astro” (“...et la neige de son visage eaçait l’astre.”). Para além deste contraste de nus lunares recortados sobre os verdes ao fundo, entrevê-se uma a nidade com a pintura veneziana, notada na disposição em frisa dos nus e na ostensiva bipartição horizontal da tela entre o espaço da alegoria mitológica e o espaço da paisagem, de remota memória giorgione-tizianesca, atravessada pela personagem eqüestre, obvia mente histórica.
Diversos estratos de significação superpõem-se na formação do sentido histórico-mitológico da obra, como em um jogo intrincado de alusões, caro ao gosto maneirista pela decifração. Do ponto de vista puramente mitológico, a cena evoca o episódio da morte de Actéon, originariamente narrado por Hesíodo na Teogonia, que, contudo, ganha sua versão mais influente durante o século XVI a partir do Livro III das Metamorfoses de Ovídio. O caçador Actéon, criado pelo centauro Quíron, surpreendeu Diana (ou Ártemis) e suas ninfas banhando-se numa nascente. Irritada, a deusa transforma o caçador em cervo para que se torne presa de seus próprios cães, enfurecidos pelo mesmo sortilégio.No relato ovidiano, muito recorrente na poesia e na pintura dos séculos XVI e XVII, subjaz uma trama de alusões políticas, provavelmente eivada de conotações satíricas, cujo sentido permanece todavia equívoco, malgrado as pesquisas recentes. Análises sistemáticas da simbologia da obra partiram inicialmente do fato de que a composição em questão é conhecida em quatro versões, cada uma delas com notáveis variantes: a do Masp, anteriormente pertencente à coleção de Maurice Métayer, a do Musée des Beaux-Arts de Rouen, a da coleção de Maurice Sulzbach e a do Museu de Tours. Das diversas possibilidades de identificar as figuras femininas depende o essencial das interpretações propostas. Para Reinach (1920, pp. 9-33), trata-se de uma alegoria dos amores de Henrique II e de Diana de Poitiers, enquanto para Blum (1921) e outros, as personagens aludiriam aos amores de Charles IX e de Marie Touchet.
Uma interpretação mais consistente foi recentemente apresentada por Grandjean (1992, p. 60), para quem os traços de Diana são os de Maria Stuart, conhecidos em virtude dos crayons de Clouet, seu el retratista. Além disso, à sua ascensão ao trono como rainha-consorte de Francisco II, Maria Stuart fora saudada como a “nova Diana”. Segundo esta mesma interpretação, na fisionomia da ninfa sentada é possível reconherem-se os traços de Catarina de Medici, que chora a morte acidental de seu esposo Henrique II, cujo apelido de “Cervo Real” justificaria a alusão à morte de Actéon. Com a dor desta ninfa/Catarina de Medici parecem regozijar-se dois sátiros músicos, algo malignos, com seus instrumentos, a trompa de caça e o alaúde, imagens alegóricas dos irmãos de Guise – o duque e o cardeal de Lorraine –, tios maternos de Maria Stuart. A figura do sátiro, representação do mal, conviria perfeitamente a estes dois membros de uma das mais poderosas famílias da aristocracia francesa, líderes da facção ultra-católica da Santa Liga e odiados por suas funestas intrigas políticas. A ninfa que passa o flammeum, o manto nupcial romano, à Diana/Maria Stuart, seria a duquesa de Guise. Em suma, interpretada em tal clave, esta Diana ao banho poderia ser decifrada em três registros simultâneos, como uma elegia fúnebre à morte de Henrique II, como uma crítica acerba à rapacidade dos de Guise e, enfim, como a celebração do casamento de Maria Stuart com o delfim Francisco II, em 1558, que se perfila ao fundo, empunhando o cetro com as armas da França. O quadro seria assim não anterior a 1559, data da morte de Henrique II, e aludiria aos esponsais de Maria Stuart, ocorridos em 1558. Trinquet (1968, p. 1) associa ao tronco foco de carvalho atrás da cena da morte do caçador Actéon/Henrique II os seguintes versos de Ronsard: “Les chênes creux parleront les oracles, / Plus que jamais on voirra des miracles ”.
Sobretudo em razão das diversas possibilidades de decifração simbólica, as quatro versões da obra (Masp, Rouen, coleção Sulzbach e Tours) foram objetos de diversas hipóteses quanto à sua cronologia. Há consenso quanto ao fato de as versões Sulzbach e Tours serem posteriores, já que o cavaleiro nelas representado é certamente Henrique IV. Para Blum (1921), o quadro do Masp é o primeiro da série, enquanto para Béguin (1965, p. 59) a precedência caberia ao de Rouen. Mas a hipótese de Béguin é prejudicada por três argumentos: em primeiro lugar, porque sua conclusão baseia-se na premissa de que o cavaleiro representado na versão do Masp seja Henrique II, quando hoje se sabe que se trata de Francisco II; em segundo lugar, porque é impossível identificar o cavaleiro representado na versão de Rouen, pelo fato de seu semblante estar borrado.
A terceira razão é sem dúvida a mais importante. Por ocasião de um recente exame da obra, realizado com a preciosa assistência de Andrea Rothe, do Getty Museum, veio à luz o fato de o semblante do cavaleiro em questão deixar transparecer um outro rosto, diferente demais para que se possa pensar em um simples pentimento. É possível, com quase toda a certeza, reconhecer nos traços sionômicos subjacentes os de Francisco I, morto em 1549, hipótese que, se confirmada, não apenas introduziria uma nova variável na equação iconográfica, mas sobretudo anteciparia em alguns anos a datação da obra. De qualquer forma, para uma inequívoca de nição das coordenadas iconográficas e cronológicas da obra é indispensável um estudo sistemático da questão.
A atribuição do quadro do Masp a Clouet, proposta por Blum em 1921, foi confirmada pela literatura ulterior, com exceção de Sterling (1955), que vê nas versões do Masp e de Rouen cópias de um original perdido de Clouet, pintado por volta de 1550.
— Autoria desconhecida, 1998