MASP

Pierre-Auguste Renoir

O pintor Le Coeur caçando na floresta de Fontainebleau, 1866

  • Autor:
    Pierre-Auguste Renoir
  • Dados biográficos:
    Limoges, França, 1841-Cagnes-sur-Mer, França ,1919
  • Título:
    O pintor Le Coeur caçando na floresta de Fontainebleau
  • Data da obra:
    1866
  • Técnica:
    Óleo sobre tela
  • Dimensões:
    112 x 90 x 3 cm
  • Aquisição:
    Compra, 1958
  • Designação:
    Pintura
  • Número de inventário:
    MASP.00094
  • Créditos da fotografia:
    João Musa

TEXTOS


Por Felipe Chaimovich
Em 1782, William Gilpin publicou um guia de viagem pelo País de Gales, na Inglaterra, relacionado especificamente com a busca pela “beleza pitoresca”. No livro, Gilpin descreve as condições de viagem para quem vai em busca de lugares singulares em sua irregularidade de relevo e vegetação. O autor acrescenta ainda rascunhos desenhados por ele para dar “uma ideia geral de um lugar, ou cena, sem entrar nos detalhes do retrato”, instrumento apropriado por se tratar de um guia de viagens que buscava precisamente identificar lugares que caberiam numa pintura, ou seja, locais pitorescos. Para Gilpin, tais locais seriam identificados como rudes: “a rudeza forma o mais essencial ponto de diferença entre o belo e o pitoresco; assim como me parece ser essa [última] qualidade particular que faz os objetos especialmente agradáveis em pintura”. A noção de rudeza na paisagem tornara-se um aspecto central dos jardins ingleses na segunda metade do século dezoito: além de áreas planas com longos gramados, os jardins deveriam conter acidentes irregulares que proporcionassem uma variedade de sensações, fonte da rudeza planejada por jardinistas. Mas Gilpin propõe buscar formações naturais irregulares por meio de viagens que incluem rascunhar de forma amadora as vistas pitorescas, pois tal prática permitiria registrar as “impressões” causadas pelos objetos rudes: “desse correto conhecimento dos objetos [durante a viagem turística] surge um outro divertimento: o de representar, por meio de alguns traços, num rascunho, essas ideias que causaram a maior impressão em nós”. A partir de então, o turismo pitoresco na Europa cresceria nas décadas seguintes, chegando aos Estados Unidos em 1820. Além dos pintores amadores, pintores profissionais de paisagem também tiveram mais demanda pelo gênero pitoresco. Alguns turistas chegavam a contratar pintores para acompanhá-los em viagens, de modo a exibir os resultados da expedição na volta. O fortalecimento da pintura de paisagem pode ser identificado pela publicação de um manual inovador sobre esse gênero, na França, em 1799, escrito por Pierre Henri Valenciennes, que podia servir tanto a pintores amadores como a professores e alunos. O autor defendia que os quadros de paisagem fossem iniciados pela pintura ao ar livre, embora se destinassem a ser finalizados em ateliê, posteriormente. O principal objetivo da pintura ao ar livre seria captar a luz particular de efeitos atmosféricos momentâneos, expressa pela combinação das cores do céu, que daria a cor específica do local naquele instante representado; a partir dessa primeira pintura feita ao ar livre, o quadro seria completado em ateliê, com a paisagem resultante obedecendo à cor local inicial. Para o estágio inicial, Valenciennes indica a duração adequada da seção ao ar livre: “todo o estudo ao vivo [d’après nature] deve ser feito rigorosamente no intervalo máximo de duas horas: e se é um efeito do sol nascente ou poente, não se deve levar mais de meia hora”. O legado de Valenciennes na França foi beneficiado pela ampliação das possibilidades do óleo sobre tela. Dois dos alunos diretos de Valenciennes foram professores de Jean-Baptiste Corot quando jovem, tendo-o treinado no exercício da pintura ao ar livre; Jean-Victor Bertin, um deles, foi quem incentivou Corot a ir praticar a pintura de paisagem na floresta de Fontainebleau. A partir de 1829, Corot passou a pintar com regularidade em Fontainebleau, estabelecendo-se na cidade de Barbizon. Corot começa então a prática a “pintura clara”, caracterizada pela mistura de branco nas demais cores. O efeito da pintura clara é oposto ao método do claro-escuro, então dominante no ensino da pintura a óleo, pois a composição não depende mais do fundo escuro para a obtenção dos volumes no primeiro plano; a pintura clara, ao contrário, considera o fundo tão luminoso quanto o primeiro plano. Ao aprofundar-se na técnica da pintura clara, Corot foi estabelecendo seu estilo e, à medida que outros pintores foram se juntando a ele, a partir de 1830, o grupo de Barbizon foi criando uma identidade própria. As novas cores de tinta a óleo possibilitavam uma pintura ao ar livre feita com amplitude crescente de matizes prontos que, quando misturados ao branco, davam cada vez mais luminosidade aos quadros. Dentre os vários pintores amadores e profissionais que passaram a frequentar a floresta de Fontainebleau em geral e Barbizon em particular, estava Narcisse Díaz de la Peña. Nascido em 1817, tornara-se aprendiz de pintor na manufatura de porcelana Arsène Gillet em 1822, começando a praticar a pintura ao ar livre em Barbizon, em 1837. Em 1849, Díaz Peña promoveu uma venda de seus esquissos e estudos ao vivo. Os esquissos eram o estágio imediatamente anterior à pintura do quadro final, segundo os procedimentos da Academia francesa; neles, o pintor estabelecia as cores do quadro planejado numa escala reduzida. Como o esquisso era um instrumento preparatório, era pintado com tinta opaca e de forma rápida. A técnica da pintura opaca possibilitava maior rapidez na execução do que o uso da tinta diluída até a transparência: enquanto a tinta transparente é aplicada em camadas muito finas e paralelas, que devem secar uma antes da aplicação da outra, com a tinta opaca pode-se compor uma figura com menos camadas; além disso, a tinta opaca pode encobrir erros, o que permite maior licença de procedimento e mascara inabilidades. Díaz Peña acolheu um jovem pintor de paisagens ao ar livre que foi a Fontainebleau durante o verão de 1862: Auguste Renoir. Ambos haviam sido pintores de porcelana que migraram para a pintura de quadros ao ar livre. Renoir nasceu na cidade de Limoges, em 1841, forte centro manufatureiro de porcelanas pintadas, indo morar em Paris ainda criança. Aos treze anos, o pai de Renoir empregou-o como pintor de porcelanas na firma Lévy Frères, onde era remunerado por peça pintada. Renoir abandonou a pintura manufatureira em 1861, após economizar dinheiro para se sustentar com estudante de pintura de quadros. Para tal propósito, passou a estudar com o pintor Charles Gleyre, que abrira uma escola particular onde se podia praticar com modelo-vivo. Gleyre usava a técnica do claro-escuro. Renoir passou a praticar o claro-escuro por interesse nas vendas que um comerciante de quadros lhe prometera. No verão de 1862, foi a Fontainebleau pintar ao ar livre. Ao conhecer o veterano Díaz Peña em Fontainebleau, recebeu um conselho decisivo: abandonar o claro-escuro, ou seja, adotar a pintura clara: “um dos principais motivos que me fez deixar de pintar em ‘negro’ foi meu encontro com Díaz. Encontrei-o em circunstâncias muito interessantes, num dia de verão em que eu estava trabalhando na floresta de Fontainebleau, onde costumava pintar paisagens (...) timidamente mostrei-lhe a tela em que estava trabalhando (...) ‘Mas por que diabos pinta com tons tão negros?’ Imediatamente comecei outra paisagem, tentando reproduzir a luz que via nas árvores, nas sombras, no solo, tais como eu as percebia”. O retrato do pintor Le Coeur é do período em que Renoir ia a Fontainebleau pintar, modificando seu método de pintura baseado nos princípios do claro-escuro para atingir a pintura clara indicada por Díaz. Como ele mesmo recorda a respeito desse quadro, conseguiu com ele expor novamente no Salão de Cabanel: “Em 1865 [sic.], tive muita sorte e fui novamente admitido no Salão de Cabanel, com um quadro de um jovem caminhando na floresta de Fontainebleau, acompanhado pelos seus cães. O pintor Lecoeur foi o seu modelo. Foi um quadro feito a faca, um método que não é muito apropriado para mim e que raramente uso”.

— Felipe Chaimovich, curador, MAM-SP, 2017

Fonte: Adriano Pedrosa (org.), MASP Boletim nº 17, São Paulo: MASP, 2017.




Por Luciano Migliaccio
Graças às pesquisas de Cooper, sabe-se que o retratado, Jules Le Coeur, oriundo de uma família abastada, deixara a arquitetura para se dedicar à pintura. Participou do Salon des Refusés de 1863 com um retrato e uma paisagem. Ele e Renoir tornaram-se amigos em abril de 1865, quando Renoir visitava a casa de Le Coeur em Bourron-Marlotte, próximo da floresta de Fontainebleau. Nesse encontro, Renoir conheceu a companheira de Le Coeur, Clémence Tréhot, cuja irmã, Lise, tornou-se sua namorada e modelo preferida nos sete ou oito anos seguintes. Jules ajudou Renoir em várias ocasiões, agenciando encomendas de retratos de membros da família e a decoração do teto de uma sala no palácio do príncipe Georges Bibesco. Para Distel (1985, p. 70), Jules seria a figura de homem com barba retratado por Renoir em A Cantina de Mère Anthony, de 1866 (Estocolmo, Nationalmuseum). J. Meier-Graefe (1912, p. 16) destaca o fato de que no verão de 1862, Renoir e outros colegas do ateliê de Gleyre trabalhavam na floresta de Fontainebleau, onde encontraram o paisagista Diaz De La Peña (1807-1876), que teve importante influência sobre o grupo de jovens artistas. De uma carta do próprio Le Coeur sabemos que, em fevereiro de 1866, ele, Renoir e Sisley percorreram a floresta a pé em busca de temas para seus quadros. O quadro do Masp – O Pintor Le Coeur Caçando na Floresta de Fontainebleau – deve remontar a essa época. Uma vista quase idêntica encontra-se em A Floresta, coleção particular, Nova York, datada de 1865 (Dumas 1924, p. 366). Camesasca (1989, p. 136) cita uma fotografia de Charles Marville, conservada na Bibliothèque Nationale de Paris, representando uma vista semelhante da mesma floresta, o que seria prova do interesse de artistas e fotógrafos por esse tipo de tema e de vista. Como nota Distel (loc. cit.), Renoir pode ter-se inspirado nas pinturas com caçadores de Courbet, que associa tais figuras à liberdade das convenções sociais e ao contato com a natureza. Camesasca ressalta que, nessa obra, Renoir assimila não apenas o valor estrutural da cor, mas também o uso da espátula, a partir da técnica do mestre do realismo, embora a distribuição das luzes lembre mais Diaz que Courbet.

— Luciano Migliaccio, 1998

Fonte: Luiz Marques (org.), Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo: MASP, 1998. (reedição, 2008).



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