Andrea Mantegna frequentou o ateliê do artista Francesco Squarcione (1397-1468) dos 12 aos 17 anos, quando se emancipou e pintou os famosos afrescos sobre a vida de são Tiago na Capela Ovetari, em Pádua (1448-57),
parcialmente destruídos na Segunda Guerra Mundial. Cunhado do artista Giovanni Bellini (1430/ 35-1516), Mantegna foi pintor da corte dos Gonzaga de Mântua, na Itália. A pintura do MASP,
São Jerônimo penitente no deserto (1448-51), retrata o santo no deserto de Cálcis da Celessíria, na Síria, como exemplo do eremita que busca desenvolvimento intelectual e penitência na solidão. A cena apresenta alguns atributos tradicionais do santo,
ao mesmo tempo asceta e erudito estudioso: o leão de cuja pata Jerônimo teria retirado um espinho, o chapéu vermelho de cardeal, a vela acesa na caverna diante de um crucifixo e a imersão na oração entre os livros
fechados. A autoria da pintura foi por muito tempo questionada, mas algumas características da obra se assemelham às de outros exemplos de Mantegna: a coruja, que se repete nos afrescos da Capela Ovetari, assim como
os rochedos e a nuvem prateada, semelhantes aos pintados na
Oração no horto, do acervo da National Gallery of Art, em Washington. O aspecto rochoso da figura de Jerônimo, que parece ser assimilado pelo cenário, obedece ao estilo de Mantegna, marcado pelo desenho expressivo e por formas
inspiradas nas esculturas da Roma antiga.
Por Renato Menezes
A pintura São Jerônimo penitente no desertoparece ilustrar o verso escrito por Ulisse degli Aleotti, segundo o qual Andrea Mantegna "esculpia mesmo quando pintava". Esta obra de juventude foi realizada provavelmente no mesmo período em que ele se
dedicava à realização da capela Ovetari, em Pádua, na Itália, e estreitava suas relações com a corte dos d’Este, em Ferrara, para os quais realizaria alguns de suas mais importantes obras. Ela documenta um período de
transição na carreira do pintor, em que as lições de luz e cor adquiridas durante sua formação em Veneza incorporam um interesse antiquário que ele aprofundará daí por diante. Na obra, a transparência das vestes do
santo, o azul atmosférico típico da pintura veneziana e a delicadeza aérea do pássaro vermelho se encontram com o gosto que Mantegna começa a despertar pelo mundo mineral. Isso se manifesta no cuidado que ele dedica
à desintegração da arquitetura, à volumetria das pedras, aos desenhos orgânicos dos veios dos mármores, à diversidade das texturas rústicas e à aridez misteriosa da rocha. No quadro do MASP, tudo parece convergir
para esses aspectos, desde a atenção dada aos estratos do solo, pesquisa que ele aprofunda no quadro
Agonia no Jardim, até seu fascínio pela gruta, expressão máxima da fantasia arqueológica do Renascimento, tema que ele retomará no quadro O Parnaso, pintado para a marquesa Isabella d’Este, em Mântua, o que permite pensar que Mantegna viu no tema de São Jerônimo no deserto um pretexto ideal para desenvolver uma técnica que procurava na natureza a beleza de sua
solidez e de sua própria transformação.
São Jerônimo, o mais antigo dos quatro padres da Igreja latina, nasceu em Stridone, nas vizinhanças de Aquiléia, aproximadamente em 347. Originário de uma abastada família cristã, foi ainda menino enviado a Roma para
aprimorar sua educação literária e gramatical (com, dentre outros, o célebre gramático Donato). Durante uma subseqüente viagem à Antioquia, decide renunciar à requintada erudição profana e consagrar-se às Escrituras,
motivado, conforme instrui sua famosa carta a Eustóquio (XXII, 30), por um terrível sonho no qual Cristo o censurava por ser “não cristão, mas ciceroniano”. Em retiro no deserto da Síria, estuda o hebraico e a
exegese bíblica, e escreve a Vida de São Paulo Eremita. Tomando partido no assim chamado cisma de Antioquia, Jerônimo, já então sagrado sacerdote, ruma para Constantinopla, onde aperfeiçoa seu grego, segue os
ensinamentos de São Gregório de Nazianzo e inicia um fundamental diálogo com o pensamento de Orígenes, de quem traduzirá as Homilias. Em 382, participa do Concílio de Roma convocado por Dalmásio, mas, após a morte
deste papa literato (384), retira-se novamente para o Oriente e para o estudo, dirige um monastério em Belém, onde por 35 anos (até sua morte em 420) consuma uma obra importante de polemista pugnaz, tradutor e
exegeta.
Embora efêmera, a experiência do deserto inclui-se entre os aspectos mais importantes da complexa temática hieronimita. Primeiramente há que se precisar a idéia medieval de “deserto”, estudada por Le Go, em sua
dimensão simbólica, como o “outro” da vida associativa: o castelo, o monastério, a corporação comunal. Na construção da imagem do santo, a gura do deserto adquire o valor de locus de uma ascese solitária, dotada
entretanto de duas vertentes bem distintas, a penitencial e a intelectual, as quais serão diversamente enfatizadas na fortuna iconográfica do santo, segundo o clima espiritual da época e as demandas devocionais da
Igreja. Não obstante a iconograa hieronimita remontar pelo menos às iluminuras da Bíblia de Carlos, o Calvo, do século ix (Paris, Bibl. Nat., ms. lat. 1, fól. 3), esta ambigüidade não se declara plenamente senão no
Quatrocentos, quando o antro ombroso, i.e., a caverna em que se encena sua re- núncia do mundo, adquire os contornos de um scriptorium humanista. O quadro do Masp, São Jerônimo Penitente no Deserto, só ganha plena
signicação à luz desta interpretação humanista da imagem do santo. Ao contrário de outras representações quatrocentistas de Jerônimo no deserto, como a de Marco Zoppo na Pinacoteca Nazionale de Bolonha, ou a da
coleção Mellon, na National Gallery de Washington, o pequeno painel do Masp não apresenta sua personagem em exasperação penitencial, mas simplesmente imersa em meditação sobre a verdade das Escrituras. Os atributos
que tem em geral na mão, a pedra com que golpeia o peito para se penitenciar dos sonhos lascivos, ou o crânio, símbolo da meditatio mortis, da respice nem, da cogita mori etc., cedem lugar, aqui, a um rosário e a um
livro, como que a indicar que sua reexão nasce exatamente da necessidade de uma concordantia entre a fé e a razão. A assimilação do ermitão ao lósofo chega ao ponto de a pomba da revelação cristã ser substituída, em
nosso quadro, pelo “pássaro de Minerva”, como bem notou Camesasca (1987, p. 40), signo de uma sapiência propriamente losóca. Para se compreender como o santo assumirá no Quatrocentos o semblante do humanista é
preciso partir de um dos mais pregnantes exemplos de comparatio no Renascimento: a oposição simétrica e complementar entre São Jerônimo e Santo Agostinho. Esta polaridade nasce, nesse período, da controvérsia
epistolar entre Petrarca (Ad Familiares, IV, 15-16), leitor contri- to das Conssões (do monte Ventoux ao Secretum), e Giovanni d’Andrea, autor do Hieronymianus (c.1326.), a mais importante fonte para a iconograa
renascentista até o Jeronimus, Vita e Transitus (Veneza, 1485).
Uma das tantas modalidades do paragone (comparação), exercício em que se compraz a intelectualidade florentina, o debate hagiográco impregna-se da tensão entre dialética e eloqüência, cabendo a Jerônimo encarnar a
gura do cristão profundamente engajado no diálogo com a ratio do mundo antigo. Não foi por outra razão que o tema do santo em seu antro/scriptorium gozou da predileção dos humanistas, notadamente da Itália
setentrional, como observou Christiansen (1992, p.115), tais como Guarino da Verona (Baxandall 1965, pp. 183-204), Angelo Decembrio, Janus Pannonius, Leone de Lazara ou Ulisse degli Aleotti, possível cliente do
quadro do Masp, segundo a conjectura do estudioso norte-americano. É sabido que a controvérsia Jerônimo/Agostinho amplia-se no século XV e início do XVI com Francesco Filelfo, Erasmo, Johann Maier von Eck etc. e
exprime-se com força também em pintura, em que os afrescos de Ghirlandaio e Botticelli no refeitório do convento de Ognissanti, em Florença, são exemplares. Os ataques de Lutero a Erasmo e ao próprio Jerônimo, bem
como sua reivindicação de Agostinho, imergem esta tradição nos conitos religiosos do século XVI e estimulam o aparato doutrinal contra-reformístico a abandonar a abordagem humanista de Jerônimo em prol do aspecto
propriamente penitencial de sua experiência de santo ermitão, i.e., em prol da outra vertente de sua ascese acima aludida. Por volta enm da segunda metade do século xvi, a imagem do lósofo cristão por excelência terá
denitivamente se convertido na de um angustiado penitente, uma contrapartida masculina de Madalena ou de Maria Egípcia, totalmente despojado de sua imagem primeira de humanista poliglota (veja-se, como exemplo, o São
Jerônimo do Museu Nacional de Belas-Artes, atribuído a Cambiaso).
A lenda do leão (leo mansueto) domesticado pelo santo, após ter este desencravado um espinho de sua pata, remontaria, segundo Réau (1958: iii, 2, p. 740), à Legen da Aurea, de Jacopo da Voragine (1267-1278). Embora
resulte provavelmente de uma fusão com um episódio da vida de um anacoreta palestino, São Gerásimo, a presença do animal simboliza de qualquer modo o parentesco teológico de Jerônimo com Marcos, segundo o consagrado
paralelo entre os quatro Evangelistas e os quatro Doutores da Igreja latina. Desde sua publicação em 1936 por Borenius, como obra juvenil de Mantegna, o quadro do Masp é objeto de uma atribulada história atributiva.
Já em 1937, Fiocco (pp. 76-77) caracteriza-o como uma “obra sutil, não estranha à inuência do mestre (Mantegna) e de Giambellino (Giovanni Bellini), mas translúcida como só Marco Zoppo amou fazê-lo no momento de sua
estada em Veneza (c. 1470)”. Vinculava a obra então (p. 182, n. 4) a um desenho da coleção Beckerath, hoje no Museu de Berlim, atribuído a Mantegna, mas, por Fiocco, a Bellini. A hipótese Zoppo foi reforçada por
Ragghianti, mas em 1961 a obra é convidada, após sua itinerância européia em 1953-1954, à exposição mantuana de Mantegna. Sua ausência é lamentada por Longhi, que, pela segunda vez (1956, p. 180, e 1962, p. 16),
reitera a atribuição a Mantegna do “sutilíssimo São Jerônimo de São Paulo”. Em 1964, fortalecendo a atribuição a Mantegna, reiterada por Gamba (conforme carta de Bardi, conservada no museu), Camesasca precisa melhor
a situação da obra, seja em relação a Squarcione (relação novamente demonstrada pelo mesmo estudioso em 1987, com a publicação de um detalhe decisivo da Madonna de Squarcione na coleção Vitetti), seja em relação ao
naturalismo “de ponta de pincel” de Roger Van der Weyden, ou ainda ao sentimento da paisagem do Piero della Francesca da Batalha de Constantino. Berenson, em 1968, inclui a obra no catálogo de Mantegna, no que é
seguido em 1970 por Garavaglia, mas a hipótese Marco Zoppo é retomada uma última vez por Armstrong em 1976, em sua monograa sobre o grande pintor ferrarês. Em 1986, Lightbown recusa ambas as atribuições até que, mais
recentemente, a atribuição a Mantegna é sancionada por dois acurados estudos diretos da obra, propostos por Camesasca (1987) e por Christiansen (1992), que a datam respectivamente de cerca de 1449-1451 e de
1448-1449. É conhecida a carta de Mantegna ao prior de S. Maria in Vado, de 7 de abril de 1500, na qual o artista declara não ter tempo para executar uma Madonna ou um São Jerônimo. Se se referir ao São Jerônimo do
Masp, esta menção forneceria um seguro terminus post quem para nosso painel, que dataria de 1450-1451. Enm, em 1993, De Nicolò Salmazo cogita com cautela atribuir o quadro a Nicolò Pizolo, companheiro de Mantegna nos
afrescos fragmentários da capela Ovetari e, segundo Vasari, prematura e tragicamente desaparecido, sobre o qual pouco de preciso se sabe.
Um dos mais positivos argumentos avançados nesta debatidaatribuição é a coincidência morfológica e pictórica entre os rochedos do quadro do Masp e os da Vocação de S. Tiago e Andrea, da capela Ovetari. Dois detalhes
suplementares merecem ademais atenção: a “coruja” de nosso quadro é a mesma que reaparece no alto do afresco do Martírio de São Tiago da capela Ovetari, e isto não apenas do ponto de vista de seu desenho e tipo
logia, mas inclusive do ponto de vista da técnica de sua iluminação; em segundo lugar, a nuvenzinha prateada e plúmbea de nosso quadro reaparece, idêntica, na Oração no Horto, da National Gallery de Washington. O
quadro São Jerônimo Penitente no Deserto, do Masp, parece ser a primeira obra conservada de Mantegna em que já se declaram as “rimas pétreas” de uma poética que, “com toda a intenção de ser clássica, foi no fundo
anticlássica”. Trata-se, com efeito, do primeiro quadro em que se vericam as palavras de Vasari, reelaboradas na célebre carta de Longhi a Fiocco: “É de duvidar enm se Andrea tenha se encantado mais pela matéria do
mármore mesmo ou pela forma em que esse se havia congurado nos exemplos antigos que lhe caíam às mãos; inclino-me a crer que a primeira prevaleceu, ao advertir que à volta daqueles seus homens lapídeos imaginou uma
natureza também ela, se não de todo arqueológica, fóssil ao menos”.