Esta mostra reúne, pela primeira vez, um conjunto de 27 pinturas da série Envolvimento, produção que marca o início da carreira de Wanda Pimentel (Rio de Janeiro, 1943), e que permanece uma das mais emblemáticas da artista. O foco desta exposição é o período mais produtivo de Pimentel em torno dos Envolvimentos, entre 1968 e 1969, embora a série chegue até 1984.
Wanda Pimentel iniciou seus estudos em arte em 1964, no Rio de Janeiro, onde foi aluna de Ivan Serpa (1923-1973), pintor conhecido por suas rigorosas abstrações geométricas. Na década de 1960, boa parte da produção artística explorava novos caminhos para a arte figurativa (em oposição à arte abstrata) através da arte pop nos Estados Unidos e na Inglaterra, do nouveau réalisme na França, e da nova figuração e da nova objetividade no Brasil. Pode-se compreender a obra de Pimentel, e particularmente a série Envolvimento, a partir do embate dessas duas referências aparentemente irreconciliáveis: por um lado, o rigor das linhas e formas abstratas e geométricas; por outro, o desejo de representar o mundocontemporâneo e cotidiano em transformação, vivido e percebido.
O universo representado nas pinturas da série envolve um corpo feminino (ainda que dele vejamos apenas as pernas e os pés) em precisos enquadramentos de ambientes domésticos — a sala, o quarto, a cozinha, o banheiro, o quarto de costura. A representação fragmentada do corpo e da casa é feita de maneira sintética, esquemática, geometrizada, mediante linhas precisas (retas ou curvas), campos de cores chapadas (sem variações, claros-escuros ou degradés), uma meticulosa técnica de aplicação de tinta (não há traços gestuais ou de pinceladas de tinta aparentes na tela) e uma paleta de cores reduzida (frequentemente com preto, branco e mais uma, duas os três cores primárias). O resultado são quadros multicoloridos e brilhantes, exatos e duros, com espaços fragmentados e perspectivas incongruentes e uma forte tensão entre os corpos, os objetos e os envolvimentos entre eles.
Da máquina de costura ao serrote, das roupas e dos sapatos aos utensílios de cozinha, dos líquidos que escorrem e transbordam de garrafas e panelas aos fios de fumaça que exalam de cigarros e xícaras de café, das pernas ao pés — tudo parece estar simultaneamente à beira do caos e submetido ao rigor de uma ordem e disciplina, algo que a sequência de 27 obras aqui apresentadas (mais do que as pinturas individualmente consideradas) revela e sublinha de maneira eloquente.
Tais leituras ganham significado especial se levarmos em conta o contexto histórico do final dos anos 1960 para além da história da arte: em todo o mundo, a aceleração dos meios de comunicação e da cultura do consumo, as reinvindicações pelos direitos das mulheres; no Brasil, a ditadura militar (1964?80), que se intensificou em 1968 com o Ato Institucional no 5 (AI-5), proibindo manifestações políticas de toda a ordem. Nesse sentido, pode-se compreender os Envolvimentos ao mesmo tempo estridentes e asfixiantes de Pimentel como uma crítica cirúrgica e sutil a todo um sistema que então se consolidava.
CURADORIA Adriano Pedrosa, diretor artístico, MASP; Camila Bechelany, curadora-assistente, MASP