<em class="italic">Histórias da dança</em> é uma exposição coletiva que estava prevista para acontecer entre 25 de junho e 5 de novembro de 2020 no MASP. Devido à pandemia global de Covid-19, a exposição - que teria reunido mais de 250 obras de 160 artistas, coreógrafos e performers de diferentes períodos, geografias e tipologias - foi cancelada devido a cortes orçamentários, complicações logísticas e relativas às viagens internacionais. Este site apresenta um registro muito parcial do que teria sido a exposição, com uma seleção de obras dividida em núcleos e versões abreviadas dos respectivos ensaios. Os textos completos, bem como uma lista completa dos trabalhos, podem ser encontrados no catálogo editado por Adriano Pedrosa, Julia Bryan-Wilson e Olivia Ardui. </br></br> *** </br></br> Mais do que propor uma narrativa cronológica sobre a história da dança, ou ainda um percurso exaustivo sobre as relações entre dança e artes visuais, a exposição <em class="italic">Histórias da dança</em> propõe uma reflexão sobre políticas do corpo em movimento. Exposições anteriores investigaram momentos históricos em que dançarinos e artistas colaboraram intimamente, como foi o caso dos Ballets Russes ou da Judson Dance Theater. Esta exposição estrutura-se em torno de termos chave no pensamento de dança — improvisação, tensão, composição, gravidade, entre outros —, pensados desde uma perspectiva ampla de como os corpos se relacionam e se movem no espaço e no tempo. </br> Abordando a dança em sua acepção mais ampla de movimento socialmente construído e codificado, <em class="italic">Histórias da dança</em> inclui gestos não necessariamente associados à dança: expressões transgressoras de sujeitos marginalizados, locomoção coordenada e disciplinada, gestos insurgentes e a ocupação subversiva do espaço público. A exposição contempla também vídeos de protesto ou danças de rua que viralizaram nas redes sociais ou plataformas como o Youtube. Além disso, o projeto também realça a importância da arte cinética latino-americana e da arte neoconcreta brasileira no centro desses debates, investigando as implicações políticas de movimentos coletivos. </br></br> De materiais arqueológicos pré-colombianos, passando pelo ritmo de telas abstratas do começo do século 20, até protestos coreografados contemporâneos, <em class="italic">Histórias da dança</em> celebra o potencial da dança de expressar a alegria e o desejo físico — e também a ira coletiva — diante da opressão e da crise. Embora as representações históricas de dança puderam muitas vezes apresentar imagens exotizadas <em class="italic">de Outros</em>, esta mostra enfatiza a autoinvenção e a reivindicação assertiva de territórios por parte de corpos negros e indígenas que se movimentam conjuntamente no espaço. Além disso, <em class="italic">Histórias da dança</em> ressalta a contribuição das mulheres, com especial atenção para perspectivas feministas e queer – desde o luto das mulheres chilenas pelos desaparecidos no regime Pinochet na dança-protesto cueca sola, passando pelo trabalho pioneiro de dançarinas como a brasileira Analivia Cordeiro ou ainda a afro-americana Josephine Baker (1906-1975). Ao evidenciar a maneira como os corpos se movem juntos dentro de contextos políticos, históricos e econômicos específicos, a exposição apresenta a dança como forma de resistência exuberante. </br></br> De fundamental importância para a mostra, está um espaço aberto, uma arena, comissionado para a artista Carla Chaim, onde aconteceria um intenso programa de performances, apresentações, ensaios e oficinas no segundo subsolo do MASP. A presença de corpos em movimento no cerne da exposição nos permite questionar criticamente as possibilidades, os diálogos e as fissuras que podem surgir quando a dança adentra o museu. </br></br> CURADORIA Adriano Pedrosa, diretor artístico, MASP; Julia Bryan-Wilson, curadora-adjunta de arte moderna e contemporânea, MASP; Olivia Ardui, curadora-assistente, MASP.
De caráter essencialmente relacional, a improvisação é um diálogo em constante evolução entre muitas partes em movimento. Na dança, a improvisação é marcada por uma responsividade fluida, em vez de seguir uma partitura ou uma sequência definida de passos, que se altera com base em situações que mudam constantemente. De fato, a improvisação, frequentemente associada à ação espontânea e não coreografada, não é desprovida de uma lógica interna própria e de um sistema de regras. Em muitos aspectos, alguém que dança ou faz música deve ter ainda mais habilidade e um conjunto de técnicas ainda mais refinado para conseguir improvisar, pois deve dispor de uma sintonia atenta às escolhas que seus parceiros de dança ou a música podem apresentar no momento, e ser capaz de ajustar seus passos ou réplica apropriadamente. </br></br> Como a improvisação, por definição, trata de criatividade e de desafiar uma ordem, ela oferece um modelo para a autoexpressão e a liberdade corporal. Foi também muito usada como uma estratégia minoritária — uma estratégia feminista, uma estratégia negra, uma estratégia indígena, uma estratégia <em class="italic">queer</em> e trans — para encontrar modos de resistir a regras limitadoras e codificadas. De fato, “romper as molduras” é um modo preciso de descrever como a improvisação pode funcionar como um ato de transgressão, uma tática de sobrevivência. Os trabalhos nesse núcleo são muitas vezes desobedientes, alegres, não conformistas e se valem da improvisação para gingar para fora das fronteiras e dos limites.
Esse núcleo reúne um conjunto de trabalhos tangentes às políticas do afeto e do desejo que transparecem nas danças de pares, a saber, as regras, dinâmicas e contratos implícitos nas formas de coordenar os passos entre dois parceiros. A mesma ação de sincronizar os movimentos pode ter diferentes leituras, desde lúdicos jogos de espelhamento que expressam a satisfação e prazeres de se estar junto até uma restrição de movimentos em dupla. Desde uma perspectiva ocidental, o dueto pode ser um território privilegiado que afirmou e disseminou uma divisão de gênero por uma distinção clara entre passos a serem performados pelo homem e pela mulher. Danças de casal por muito tempo foram estabelecidas e difundidas como práticas sociais construídas no sentido de definir uma coreografia unilateral e hierárquica de dinâmicas heterosexuais. </br></br> Os trabalhos feministas e queer nestsa seção confrontam essas ideologias e são representativas de como o espaço entre dois corpos pode ser pensado metaforicamente como um terreno de disputas no qual um parceiro encara, desafia e enfrenta o outro. Para além dessa concepção do dueto como um encontro-embate entre corpos, muitos trabalhos desse núcleo também vislumbram a possibilidade de pensar a dança como uma dinâmica entre póolos interdependentes em alternância cíclica e dinâmica.
Gravidade é uma força física a qual todos os corpos estão inevitavelmente sujeitos e, enquanto tal, é uma problemática constante para dançarinos e coreógrafos. Esse núcleo aborda como diferentes práticas corporais lidaram com a gravidade – negando-a ou ativamente a assumindo. Respostas explícitas aos efeitos da gravidade no corpo e no seu peso se intensificaria na dança pós-moderna estadunidense e no butô japonês, nos anos 1950 e 1960 em diferentes situações de desequilíbrio, inversão e queda. Em outros trabalhos reunidos nessa seção, estados de vertigem e suspensão associam a perda momentânea das faculdades físicas de locomoção ou localização no espaço a situações concretas de queda ou perigo iminente tão característicos de nosso momento atual. </br></br> Nesse núcleo, damos destaque a engajamentos indígenas e das diásporas africanas com a gravidade: se trata de um engajamento que considera o plano horizontal da terra, conectando a ideia de gravidade com a noção de peso, severidade e enraizamento. Da capoeira até os trabalhos de Tanya Lukin Linklater e Denilson Baniwa, artistas e performers assumem a materialidade tanto dos corpos como do território, em uma abordagem diametralmente oposta à evanescência sustentada pelo balé de matriz europeia.
Dentro do vocabulário da dança, “tensão” é o estado de estar firmemente distendido. Significa retesamento ou constrição, descrevendo o que acontece quando o sujeito mantém os músculos com alguma pressão ou esforço, em vez de deixá-los relaxados ou soltos. Usada em sentido mais metafórico, a tensão também pode significar conflito e fricção. Do mesmo modo, a resistência se relaciona tanto às energias de forças opostas (digamos, quando duas pessoas dançando se afastam, usando um impulso e retração para se propulsar em direções distintas) quanto à luta em tempos adversos. Os trabalhos dessa seção ilustram o modo como corpos agitados podem ser uma ferramenta de dissidência em tempos tensos — momentos de crise ou emergência como guerras, mudanças climáticas, pandemias e desastres econômicos —, com ênfase em danças que emergem na angústia para se formular como protesto. </br></br> Em algumas partes do Norte global, cultural e religiosamente moldadas pelo cristianismo, a dança foi historicamente vista com certa suspeita, pois era relacionada a doenças, perversidade, populações caóticas, compulsão, intoxicação ou transes delirantes. Além dessas histórias que vinculam a dança à morte, outras linhagens espirituais apresentam a dança como uma força vital capaz de catalisar grandes transformações. Como demonstram muitos desses trabalhos, danças frenéticas e furiosas podem ser um modelo para que corpos racializados, genderizados e <em class="italic">queer</em> possam se juntar para descobrir e liberar suas potências latentes, e a tensão pode ser uma maneira urgente e focada de rebater quando as circunstâncias são desesperadoras.
Se a dança pode ser uma forma libertária e espontânea de expressar alegria coletiva e um senso de sociabilidade prazerosa, também pode ser um lugar de estrita disciplina, ordenação e controle. Ao citar, questionar ou problematizar diferentes sistemas de organização, composição, notação de dança, os diferentes trabalhos reunidos nessa seção mostram como a normatização das subjetividades pode implicar medição, ordenação e contenção do corpo no espaço e no tempo. </br></br> Por outro lado, a repetição e a transmissão também abrem possibilidades e conferem às obras novos sentidos e sobrevidas: uma mesma coreografia adquire novos sentidos cada vez que ela é performada por um corpo distinto e em um momento diferente. Ao abordar os processos de aprendizagem e disseminação, os trabalhos também apontam para as brechas e lacunas desses diferentes métodos e enquadramentos, que nunca conseguem apreender o corpo por completo.
Quando acontece, a sensação beira o indescritível: você está na pista de dança, lado a lado com outros corpos, a batida da música vibra atravessando a todos, e a multidão começa a se mover como uma só. Celebrado como um fenômeno eufórico que, em algumas tradições espirituais, chega a se aproximar do divino, a sincronicidade entre hordas de pessoas dançantes, seja em uma rave ou durante um ritual, é notável por misturar um conjunto de indivíduos em uma única massa coordenada. Que outros estragos podem ser causados quando dançamos juntos, sincopando nossas ações para formar uma unidade poderosa? Que força, transcendência ou caos poderia resultar disso? </br></br> Muitos trabalhos desse núcleo avaliam o que acontece quando corpos se sincronizam para dançar. Aqui, os agrupamentos e aglomerações da pista de dança são literalmente retratados e também reproduzidos de maneira alusiva como combinações de formas e pulsações visuais; algumas obras mostram um movimento comum sincronizado com a música usando meios representativos e pictóricos, enquanto outros são abstratos e oblíquos ao se valer de pulsos ópticos, ritmando seus movimentos em harmonia na criação de novos conjuntos. Artistas feministas e <em class="italic">queer</em> olharam com frequência para as sincronicidades da dança como um espaço quase utópico de construção de comunidade, com potencial de suspender temporariamente algumas hierarquias da diferença, para reunir identidades díspares e criar um tipo de refúgio harmonioso.
“Contra a parede” é o núcleo da exposição que se articula em torno da presença da dança nas instituições de arte e, no caso, no próprio MASP. Esse núcleo se desdobraria em duas frentes: de um lado, uma seleção de vídeos de dança em espaços expositivos; de outro, uma intensa programação de performances e apresentações na Arena para cercar o território (2020), trabalho comissionado pela artista paulistana Carla Chaim. Entre as performances pensadas para esse núcleo, muitas dialogam estreitamente com as artes visuais, o formato da exposição de objetos e o próprio contexto do museu. O segundo eixo que estrutura o programa de performances questiona precisamente o que seria pensar as histórias da dança desde uma perspectiva mais plural e polifônica. </br></br> Ao situar uma ampla arena para dança no meio do museu, o projeto visa posicionar corpos ativos no coração da exposição, diferentemente do status de programa paralelo que geralmente caracteriza a programação de dança e performance em muitas instituições. Isso nos permite questionar criticamente as possibilidades, diálogos e rupturas que podem surgir da apresentação de corpos em movimento no museu e, especificamente no MASP, em um local que foi originalmente concebido por Lina Bo Bardi como um hall cívico.